Excrementos de aves podem ser a chave para prever a próxima pandemia. Cientistas atentos a rotas migratórias

Um ecossistema único na Baía de Delaware, nos Estados Unidos, serve de palco para uma investigação científica que pode ser crucial na prevenção de futuras pandemias. Durante a primavera, sob a primeira lua cheia de maio, caranguejos-ferradura emergem das águas para depositar seus ovos nas praias da região. Em seguida, centenas de milhares de aves migratórias aterrissam, alimentando-se vorazmente dos ovos ricos em nutrientes antes de prosseguirem para os seus destinos no Ártico.

O que para muitos é apenas uma maravilha ecológica, representa para cientistas uma oportunidade única de estudar a disseminação de vírus da gripe em aves migratórias. Este ano, as atenções redobraram, à medida que o vírus H5N1 — uma variante altamente patogénica da gripe aviária — tem causado estragos em aves domésticas e, pela primeira vez, foi identificado em gado leiteiro nos Estados Unidos.

O trabalho é liderado por investigadores financiados pelos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA e pelo Hospital Infantil St. Jude. Desde 1985, a equipa coleta amostras de guano de aves na Baía de Delaware para rastrear vírus da gripe. Segundo o virologista Robert Webster, que iniciou o projeto, citado pela CNN Internacional, “descobrimos que o vírus da gripe se replica no trato intestinal das aves, sendo excretado na água e disseminado”. Aos 92 anos e já aposentado, Webster ainda acompanha ocasionalmente o trabalho de campo.

As amostras são analisadas para identificar subtipos de vírus. Em 1985, cerca de 20% das amostras recolhidas continham vírus da gripe, consolidando a Baía de Delaware como um observatório privilegiado para monitorizar os movimentos desses agentes infecciosos. Richard Webby, que assumiu o projeto, destaca: “Para prever pandemias, é essencial entender o que é normal agora e, a partir daí, identificar mudanças.”

O vírus H5N1, que inicialmente afetava apenas aves, já começou a infetar outros mamíferos, como raposas e leões-marinhos, aproximando-se do potencial de transmissão entre humanos. Nos EUA, surtos recentes em gado leiteiro marcaram um ponto de viragem, já que este vírus nunca havia sido registado em vacas antes.

Webby alerta para o risco de o vírus sofrer mutações que o tornem mais facilmente transmissível entre humanos. “Basta uma pequena alteração no DNA do vírus para que ele se adapte às células humanas”, explica.

Apesar dos esforços, as análises das amostras coletadas este ano na Baía de Delaware e em populações de patos no Canadá não detetaram o H5N1. Ainda assim, o vírus continua a circular, com infecções humanas esporádicas, mas graves, registadas em estados como Louisiana e Washington.

Uma novidade deste ano foi a utilização de um laboratório móvel, estacionado perto da área de coleta, para acelerar a análise inicial das amostras. Lisa Kercher, responsável pelo laboratório, afirma: “Se conseguirmos processar apenas as amostras positivas, poderemos ganhar tempo crucial.”

O trabalho da equipa resultou em importantes contribuições para um estudo publicado recentemente, que revelou que o surto de H5N1 na América do Norte foi causado por múltiplas introduções do vírus por aves migratórias vindas da Europa e Ásia.

Embora o H5N1 não tenha sido identificado na Baía de Delaware este ano, os cientistas permanecem vigilantes. “As aves costeiras continuam a transportar vírus por longas distâncias, espalhando-os enquanto param para se alimentar”, afirma Kercher.

Com o regresso da primavera, a equipa estará de volta à Baía de Delaware, coletando novas amostras e reforçando a vigilância. “Não sabemos o que está por vir, mas estaremos aqui para monitorizar”, conclui a investigadora.

O estudo da interação entre aves migratórias e vírus continua a ser uma peça essencial na compreensão e antecipação de possíveis pandemias, num esforço para proteger populações humanas e animais.