Empresa de tratamentos ilegais contra o cancro investigada por fraude e crimes contra a saúde pública. Dono é ex-banqueiro com ligações à Rússia

A história de David Mejía, um jovem de 28 anos natural de Maiorca, é um exemplo de um caso que tem levantado sérias questões sobre a comercialização de tratamentos experimentais contra o cancro. A 19 de dezembro de 2019, Mejía gravou um vídeo enquanto viajava de Gibraltar para Marbella, Espanha, com a promessa de iniciar um inovador tratamento de imunoterapia para combater um cancro raro. O seu sangue seria processado num laboratório na Alemanha, onde células dendríticas — um tipo de glóbulos brancos — seriam modificadas para lutar contra o tumor. No fundo, um tratamento experimental e não aprovado pelas autoridades de saúde. Johannes Schumacher, fundador da empresa Immucura Med SL e condutor do veículo, declarou no vídeo: “Estou muito feliz por ajudar o David.”

No entanto, a esperança de Mejía foi breve. Um mês depois, a 23 de janeiro de 2020, morreu, pouco após completar 29 anos. Hoje, Schumacher enfrenta acusações de fraude e crimes contra a saúde pública, num caso que envolve a venda de terapias não autorizadas a centenas de doentes oncológicos.

Antes desta viagem a Marbella, Mejía e a sua companheira passaram por um percurso desesperado em busca de soluções, explica o El País. Num vídeo gravado no aeroporto de Madrid, o casal partilhou a sua experiência em três clínicas privadas especializadas em oncologia, incluindo a Clínica Universidade de Navarra e o MD Anderson, que lhes ofereceram a possibilidade de diagnósticos moleculares e a participação em ensaios clínicos. Mas o tempo era um inimigo implacável, e o processo parecia demasiado lento para quem precisava de respostas rápidas. Foi então que uma videoconferência com um representante da Immucura lhes apresentou uma alternativa mais atraente: um tratamento com imunoterapia, supostamente eficaz e pronto a começar em apenas duas semanas, mediante o pagamento de 40.000 euros.

Na altura em que Mejía se preparava para iniciar este tratamento, a Junta da Andaluzia recebeu uma denúncia contra a Immucura por uso ilegal de terapias avançadas. A Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos de Saúde (AEMPS) já havia alertado para o facto de que o tratamento com células dendríticas oferecido pela empresa não tinha a devida autorização. A Immucura não cumpria nenhum dos três requisitos previstos na legislação para terapias experimentais: ensaio clínico, uso compadecido ou aprovação hospitalar.

Apesar de já ter sido alvo de sanções, a Immucura continuou a operar em 2024. Um consórcio internacional de jornalistas, composto pelo jornal El País e outras publicações europeias como o ZDF, Der Standard e De Tijd, investigou as operações da empresa e descobriu que Schumacher, um ex-banqueiro de investimentos com ligações à Rússia, conseguiu expandir o negócio para vários países da Europa, vendendo tratamentos a pacientes em fases avançadas da doença. Desde a sua fundação, a empresa já tratou mais de mil pacientes, arrecadando milhões de euros.

As autoridades voltaram a agir em 2022, quando uma nova denúncia resultou novamente em sanções contra a Immucura. Embora a empresa afirme que já não opera em Espanha, um paciente belga confirmou ter recebido recentemente documentação enviada a partir de Marbella.

A 26 de junho de 2024, a Procuradoria de Marbella abriu uma investigação sobre dois alegados crimes — fraude e crimes contra a saúde pública — relacionados com as atividades da Immucura.

O consórcio de jornalistas entrevistou vários antigos funcionários da Immucura, que descreveram um ambiente de trabalho onde o objetivo principal era vender tratamentos, sem que houvesse qualquer especialização médica. Um desses antigos trabalhadores afirmou: “O que fazíamos em Marbella era puramente comercial. Contactávamos com pessoas que deixavam os seus dados na internet e vendíamos o tratamento.” Outro ex-funcionário, que optou por manter o anonimato, reforçou a crítica ao afirmar que a empresa não era uma clínica, mas sim uma intermediária que comprava o tratamento por uma fração do preço que cobrava aos pacientes.

O próprio Schumacher, num questionário respondido através do seu advogado, alegou que a Immucura apenas fazia a mediação entre os pacientes e os laboratórios, que supostamente detinham as licenças necessárias. No entanto, recusou-se a revelar a identidade desses laboratórios.

Células dendríticas: esperança ou risco?

As células dendríticas, descobertas por Ralph Steinman, laureado com o Prémio Nobel da Medicina em 2011, têm mostrado potencial como uma forma de imunoterapia. No entanto, como explicou Felipe Prósper, diretor da Unidade de Terapias Avançadas da Clínica Universidade de Navarra, esta técnica ainda está em fase experimental e não faz parte dos tratamentos convencionais. “Ainda não sabemos se pode ser aplicada como terapia única ou em combinação com outras”, explicou o especialista, sublinhando que, embora promissora, esta terapia exige mais investigação e ensaios clínicos controlados.

Um esquema difícil de rastrear

A Immucura apresenta-se como uma empresa de tratamentos inovadores, mas a falta de supervisão médica, a ausência de ensaios clínicos e a falha em divulgar resultados científicos levantam sérias preocupações sobre a legitimidade das suas operações. Além disso, o uso de expressões como “laboratório supersecreto na Alemanha” e a recusa em divulgar parcerias com laboratórios levantam suspeitas adicionais. Investigações realizadas na Alemanha revelaram que nenhum dos quatro laboratórios autorizados para trabalhar com células dendríticas colabora com a Immucura.

Mesmo com a crescente pressão das autoridades, a Immucura continua a atrair pacientes, muitos dos quais em situações desesperadas. Um cidadão sueco que perdeu a sua mulher para o cancro após iniciar o tratamento com a Immucura, expressou o sentimento de muitos: “Não me arrependo de nada. Se tivesse funcionado, teria valido cada cêntimo.”

A investigação sobre a Immucura continua, com as autoridades a tentar travar as operações da empresa, enquanto esta explora novas jurisdições para contornar as restrições legais e atrair novos pacientes.

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