Entre a necessidade de reparar o seu legado e condicionar Trump: Biden despede-se do mundo
“A América está de volta”: esta foi a grande mensagem de Joe Biden, a 4 de fevereiro de 2021, duas semanas depois de ter tomado posse como presidente dos Estados Unidos, no seu primeiro grande discurso sobre política externa.
Desta forma, Biden ‘desmontou’ as tensões de Donald Trump durante o seu primeiro mandato: as tentativas de romper a tradição trasatlântica e o credo do multilateralismo; a pressão sobre a NATO para cumprirem os compromissos orçamentais na Defesa; as constantes fricções na ONU; a suspensão dos pagamentos à agência das Nações Unidas para os refugiados na Palestina; afastamento do Acordo de Paris – assim como um crítica às abordagens simbólicas de Trump a Putin e Kim Jong-Un. “Vamos reparar as nossas alianças e voltar a envolver-nos no mundo”, prometeu Biden, destacando “o trabalho conjunto” para resolver problemas globais.
O verdadeiro objetivo não era, na verdade, muito diferente das linhas seguidas por Trump: estabilizar as fontes de tensão e orientar a política externa dos EUA para a região Ásia-Pacífico, com a prioridade de conter as ambições da China. Os planos de segurança nacional das administrações Trump e Biden tiveram como guia a chamada “rivalidade estratégica” com o gigante asiático – e com a Rússia, no que diz respeito às armas nucleares.
No entanto, lembrou a publicação espanhola ‘ABC’, as intenções foram arruinadas pela cascata de crises – Afeganistão, Ucrânia e Gaza – com que Biden teve de lidar. Agora, nos instantes finais da presidência, Biden tenta reparar um legado desgastado.
Biden ficará inicialmente na história como um presidente eficaz – controlando e ultrapassando a pandemia da Covid-19, aprovando um plano histórico de infraestruturas – mas será mais tarde ultrapassado pela sua incapacidade de travar a inflação ou o caos da imigração. A sua decisão de procurar a reeleição, uma das chaves para a vitória de Trump, será posta em causa e deixará para sempre a mancha do perdão ao seu filho Hunter. Mas o seu impacto – ou a falta dele – nas relações internacionais também será questionado. E, ao mesmo tempo, procura condicionar o cenário de política externa que Trump herdará a partir de 20 de janeiro.
Mais fraqueza do que experiência
Joe Biden sempre teve um interesse especial pela política externa. Quando era apenas vereador no Delaware, candidatou-se a um lugar no Senado porque sonhava negociar grandes tratados internacionais, e não contratos de recolha de lixo. Na reta final das suas décadas na Câmara Alta, presidiu à Comissão dos Negócios Estrangeiros.
Uma vez na Casa Branca, não correspondeu às expectativas. O seu primeiro teste decisivo foi a saída do exército dos EUA do Afeganistão, que terminou num susto caótico, embaraçoso e trágico. O Governo de Cabul, que Washington apoiou com milhares de milhões de dólares em ajuda militar e cooperação, caiu como um castelo de cartas antes da investida talibã. Biden teve de engolir um fracasso coletivo partilhado com as administrações anteriores, mas rapidamente mostrou mais sinais de fraqueza do que experiência na arena internacional.
Segundo os críticos, a fraqueza de Biden está na origem dos principais conflitos que pesaram sobre o seu Governo: a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, uma guerra com um enorme custo económico para os EUA; o ataque do Hamas ao território israelita que provocou a guerra em Gaza e levou a outra guerra – a do Líbano, com um acordo de cessar-fogo recentemente acordado – e à turbulência com grupos pró-iranianos em toda a região. Mas também outras tensões a que Biden não conseguiu pôr fim. Por exemplo, os excessos de Nicolás Maduro na Venezuela, onde o presidente democrata relaxou as sanções à indústria petrolífera e só conseguiu que o ditador chavista ganhasse uma nova presidência.
Forcing final
Na reta final da sua presidência, Biden desperdiçou o seu legado interno. Na política externa, pretende recompor-se nas últimas semanas na Casa Branca. Está a fazê-lo decisivamente na Ucrânia, onde tem procurado reforçar o governo de Volodymyr Zelensky antes de Trump chegar à Casa Branca. Depois de mais de dois anos e meio com pressão constante de Zelensky para ter acesso a armas mais poderosas, Biden autorizou o uso de mísseis de longo alcance (ATACMS) e minas antipessoal dos EUA (proibidas por convenções internacionais em que os EUA não participam). Acabou também de aprovar o maior envio de armas militares – quase mil milhões de dólares – desde a primavera passada e espera-se uma onda final de ajuda.
Na frente do Médio Oriente, Biden celebrou no mês passado o cessar-fogo mediado pelos EUA e por França entre Israel e o Hezbollah, a organização terrorista que controla parte do Líbano. É uma vitória de Pirro face aos problemas causados pela guerra em Gaza, onde desiludiu tanto os esquerdistas como os conservadores nos Estados Unidos.
Joe Biden tem agora uma nova oportunidade de redenção na Síria. A deposição de Bashar al-Assad por uma milícia islâmica da oposição abre um período de incerteza em que a Administração Biden procura promover uma transição que dê estabilidade ao país. É difícil que isso se concretize nas poucas semanas que restam a Biden na Casa Branca. Mas o presidente cessante reivindicou a medalha pela queda de Al-Assad: na sua opinião, tal deve-se ao apoio incansável do seu Governo a Israel contra o Hezbollah e o Irão, e ao seu apoio à Ucrânia contra a Rússia.
Agora chega Trump, que terá ‘de apagar’ estes incêndios, embora a linha central da sua política “America First” seja que os EUA deixem de ser o bombeiro – ou polícia – do mundo. O presidente eleito fez promessas de campanha agressivas em matéria de política externa. Por exemplo, acabar com a guerra na Ucrânia “em 24 horas” ou alcançar uma paz que durante décadas escapou no Médio Oriente. Terá de partir do enquadramento das últimas alterações promovidas por Biden.