2024 poderá marcar o fim das guerras e da crise? Especialista receia que onda de violência mundial se intensifique. “Basta olhar para o mapa”, alertou
O que podemos esperar do mundo em 2024?
Relembremos como saímos de 2023 para perspetivar o que podemos assistir no próximo ano: conflitos no Médio Oriente e na Ucrânia, tensões militares crescentes em vários pontos do mundo. A Europa em sobressalto com a coesão do projeto europeu. Sobem os receios em várias capitais de uma nova crise mundial de abastecimento e consequente inflação. Compromisso a nível global de uma aposta declarada nas energias verdes para combater as alterações climáticas.
Todos estes fatores são peões de um intenso xadrez geopolítico que tem moldado a história mundial recente e a convicção é que 2024 não conhecerá melhorias, até bem possivelmente assistir-se-á a um agravamento da instabilidade global. Para obtermos uma visão apurada do que esperar para 2024, convidámos Ana Evans, professora de Filosofia, Política e Economia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, para nos enquadrar os vários mecanismos que têm feito girar o mundo.
“Podemos esperar um 2024 mais pacífico ou a onda de violência que grassa no mundo promete escalar?”
“Começa com a pergunta de um milhão”, referiu a especialista.
“Tenho uma visão do mundo como uma espécie de helicóptero. Olho para o mapa do mundo e penso nas lições que aprendemos este ano, assim como em anos passados, principalmente desde o início da pandemia e com a guerra na Ucrânia. E, pensando em 2024, classificá-lo-ia como o ‘ano da volatilidade’ e o ‘ano do atlas das matérias-primas críticas’. Porquê? Está relacionado com as guerras que atravessamos mas também as alterações climáticas”, indicou.
“Vejo que, tal como assistimos nos últimos dias com os ataques dos Houthis a partir do Estreito de Bab al-Mandab, perto do Iémen, contra diversos navios, num conflito que começou com os ataques do Hamas a Israel, e o que já vimos com a guerra na Ucrânia e o que já tínhamos visto com a pandemia da Covid-19, é a importância dos pontos nevrálgicos das cadeias de abastecimento. Não apenas da extração de matérias críticas, mas também na logística do transporte. Ou seja, para os Estados e empresas, vai ser cada vez mais importante assegurar que no caso de eventos inesperados os pontos nevrálgicos de transporte e os grandes pontos de extração de minérios, de terras raras e materiais críticos estão salvaguardados de uma forma diversa.”
O controlo desse ecossistema económico essencial “vai marcar o próximo ano”. “Pondo isto de uma forma mais prática: houve um acordo na cimeira do clima (COP28) para acelerar a transição energética. Para isso acontecer vamos precisar de um conjunto de matérias críticas. E por que são críticas? Porque influenciam todo o ecossistema de produção. Estas matérias críticas estão concentradas em pontos nevrálgicos do mundo e estão sujeitas a transportes marítimos e às estrangulações que existem no sistema global de transportes.”
“Como houve um compromisso a nível global de duplicar a eficiência energética e triplicar as energias renováveis até 2030, o que é um prazo muito curto, significa que vamos ter muita pressão sobre a extração de matérias-primas críticas para que isto seja possível. Traduzindo em termos geopolíticos: nos próximos cinco anos vamos ter uma transição cada vez rápida para fontes verdes de energia e uma menor dependência daqueles que eram os pontos tradicionais de poder energético, que era o petróleo. E isto vai influenciar toda a política internacional.”
Mas como é que se transforma um compromisso de transição para as energias verdes num gatilho de conflito a nível mundial?
“É muito importante, quer para empresas quer para Estados quer para organizações que lidam com os setores de importação entenderem como é que se vai encontrar um novo equilíbrio, que assegure o que se conhece como ‘just-in-case’ em vez do modelo que tivemos até agora, o modelo de máxima eficiência, que é o modelo ‘Just-in-time’. E porquê? Porque basta um tremor de terra, uma catástrofe, um líder mundial assassinado, haver eleições que corram mal, um conjunto de fatores imprevisíveis.”
“Aprendemos, desde a pandemia – com o isolamento e paragens de produção – e depois com guerra na Ucrânia – com a dependência energética da Europa sobre a Rússia – que se não tivermos uma estratégia que pondere assegurar a diversidade das matérias, quer no ponto de extração, de processamento ou nos transportes, se não encontrarmos este equilíbrio, corremos o risco de novos pontos de dependência que nos colocam numa posição vulnerável face a estados autoritários”, garantiu Ana Evans.
E como isso se traduz no mapa geopolítico mundial face ao passado recente?
“Quando olho para o mapa, vejo oceanos, vejo transporte marítimo, vejo os grandes investimentos que a China tem feito nos pontos essenciais nos materiais críticos para a indústria e para a energia verde. Vejo como os EUA, que tinham ficado tão para trás nesta corrida, estão agora a fazer investimentos, e como a União Europeia está agora a ter uma ação ativa não só na regulação do comportamento climático das empresas, mas também em acordos com Estados que tenham uma posição muito crítica.”
Não faltam exemplos no panorama internacional desta ‘corrida’. “Repare o caso da República Democrática do Congo, que produz 73% do cobalto a nível mundial (este minério desempenha um papel vital na transição dos combustíveis fósseis para fontes de energia renováveis, como a energia solar e a eólica), e tem tido conflitos recentes com o Ruanda. A União Europeia assinou diversos acordos de cooperação com o Ruanda em várias áreas, para tentar que haja calma na região. Se pensarmos como a Europa, em particular a Europa de Leste, ficou de joelhos com uma percentagem que não era tão significativa da produção e venda de gás da Rússia, imagine-se com 63% de cobalto mundial, tão essencial para a transição para tecnologias verdes.”
Assim, 2024 vai ficar marcado por possíveis novos conflitos. Onde? Basta olhar para o mapa, segundo explicou a especialista em geopolítica. “Onde passa o maior comércio mundial diariamente. São estes pontos nevrálgicos do grande comércio internacional que vejo como muito marcantes para o próximo ano.”
“No Canal do Suez, por exemplo, passa 12% do comércio mundial do petróleo e 8% do GPL no Mar Vermelho, isto mostra-nos como esta zona é tão importante e porque é que os Estados Unidos já se coligaram com mais nove países para a defesa dos ataques dos Houthis. Os ataques não estão a ser contra Israel, estão a ser num ponto de estrangulação de comércio internacional.”
E que implicações poderá ter? Bastante graves, referiu a especialista. “Quantas empresas marítimas já voltaram a fazer a viagem pelo Cabo da Boa Esperança? Isso significa viagens maiores, muito mais combustível, mais tempo, seguros maiores, o que significa que podemos esperar que os preços dos cereais, combustíveis e mercadorias vão aumentar.”
“Isto quer dizer que é muitíssimo mais problemático a nível mundial haver ataques em pontos de estrangulamento marítimo do que um ataque específico a um país, como neste caso Israel. Tem uma repercussão mundial muito maior.”
Mas a tensão militar e geopolítica não fica reduzida ao Mar Vermelho, há mais exemplos, lembrou. “O Estreito de Bósforo, na Turquia, que é outro dos pontos de estrangulamento do comércio internacional, também foi alvo de grande instabilidade por causa da guerra da Rússia na Ucrânia. E, no meu ponto de vista, o que Moscovo sempre desejou foi o acesso aos portos de água quente no Mar Negro e o controlo de uma grande parte da costa.”
Recorrendo ao mapa mundial, podemos identificar quais são então os pontos mais críticos?
“O Mar do Sul da China e o Indo-Pacífico, em geral. Esse é o meu receio para o próximo ano. No Extremo Oriente temos Malásia, Indonésia, Singapura, Tailândia e estes são todos países que estão envolvidos nas passagens comerciais que vêm da Ásia para a Europa e onde todos desejam ter influência regional e a China acima de todos eles. E há muitos conflitos pelo domínio das águas. Mas faz todo o sentido: o importante é controlar toda a logística do comércio mundial.”
A China “acima de todos eles”. Como assim?
A atuação da China num passado recente tem sido “brilhante”, considerou Ana Evans. “Com a sua iniciativa ‘Belt and Road Initiative’ (‘Nova Rota da Seda’), o que é que a China esteve a fazer? Criou roteiros ferroviários e rodoviários, com muito investimento em infraestruturas, para ter rotas alternativas que não são marítimas. O comércio marítimo, no entanto, é muito mais eficiente. A China tem sido brilhante porque tem pensado muito bem como controlar as rotas dos transportes de matérias críticas, controlando pontos nevrálgicos na Ásia Central, na Ásia Oriental, chegando à Europa, mas controlando também os pontos de extração e processamento em África – a China controla 80% da extração de cobalto do Congo, por exemplo, assim como várias outras extrações de minério. Controla penso que 40% dos portos de águas profundas em África.”
E que resposta têm dado a Europa e os Estados Unidos nesta ‘corrida’ pelas matérias críticas que vão dominar a economia neste século?
“A Europa teve um período de paz prolongado, felizmente, desde a II Guerra Mundial. Mas isso fez com que desse muito pouco importância à defesa e perdesse a noção da importância dos mapas e da geopolítica. Mas a verdade é que, com as paragens da pandemia, a Europa e os EUA ficaram de repente sensíveis às dependências assimétricas, ou seja, aos riscos associados ao facto de, como blocos democráticos, ficarem dependentes de materiais críticos relativos a países que não são democráticos e não estão alinhados com os nossos valores fundamentais.”
Veja-se o caso como o conflito na Ucrânia fez soar os alarmes na Europa, especialmente a nível energético. “Já sabíamos que Putin não era propriamente um defensor dos direitos humanos, mas a relativa paz fez com que os blocos democráticos se esquecessem que os fluxos de comércio e as cooperações a nível internacional não são suficientes para superar o que historicamente é o interesse nacional. E as grandes potências autoritárias – como a China e Rússia – nunca se esquecem do seu interesse nacional.”
“Isso ficou muito visível de novo com a guerra na Ucrânia e com a pandemia. Que não se pode descurar, de forma alguma, a assimetria em tudo o que sejam matérias ou indústrias críticas, como energia, alimentação, as alterações climáticas, para tudo o que usamos no dia a dia. Não é por acaso que a UE tem publicado listas de matérias críticas e revelado quais as apostas europeias para estimular a diversidade, a resiliência e sustentabilidade na importação destas matérias. E também tivemos vários pacotes legislativos, assim como nos EUA, para trazer para dentro a produção de semicondutores avançados que estavam controlados por Taiwan em mais de 90%.”
Ou seja, “de repente, acordaram e perceberam que é preciso olhar para o mapa, para os pontos de estrangulamento, de produção”.
Se todos os gigantes mundiais estão atualmente a olhar para o mapa, o que isso pode trazer para 2024 ou um futuro próximo?
“Se olharmos para as últimas décadas, vemos que boa parte das guerras que estalaram no mundo têm a ver com a geoeconomia do petróleo. O que espero que aconteça é mais ou menos a mesma lógica, só que agora olhando para os metais e terras raras que são críticos para as novas fontes de energia e olhando para os grandes pontos de passagem mundial do comércio.”
Putin, por exemplo, soube olhar para história, indicou Ana Evans. “A Rússia teve uma estratégia um pouco parecida com a da China, embora não com o tipo de investimento maciço. Moscovo, antes de invadir a Ucrânia, mais ou menos quando invadiram a Crimeia, passaram de importadores de alimentos para exportadores mundiais. Implementaram uma política de autossuficiência e fizeram uma transformação industrial maciça, em apenas uma década. Claro que é muito mais fácil fazer num país autoritário, porque o comando central consegue ter uma intervenção na economia muito mais intensa do que um país democrático, onde a economia não está sujeita a uma mão tão pesada do Estado. O que é certo é que a Rússia se preparou para a guerra através de uma estratégia que lhe visava garantir autossuficiência, até mesmo a nível militar. Primeiro preparam-se e depois agrediram.”
“E isso causa-me receio quanto à China, que nos últimos anos tem-se preparado para ter um domínio sobre pontos fulcrais de produção, extração, processamento e transporte a nível mundial, incluindo portos e ferrovia. Olhar para a China é ver o que a Rússia já fez: quando se sentiu estar autossuficiente, fez a sua intervenção.”
A União Europeia, aliás, tem de prestar atenção a estas ondas de choque resultantes das guerras, avisou a especialista.
“Todas as guerras, de alguma forma, estão relacionadas, não só uma componente étnica, mas também de disputa territorial. Mas também estão todas ligadas ao comércio internacional, sobretudo em pontos essenciais das matérias críticas. Os locais onde vemos as guerras arrastarem-se mais tempo têm um cunho geopolítico muito marcado”, apontou.
“Temos 114 milhões de refugiados no mundo e uma grande fatia procura a Europa. Esperaria, infelizmente, alguma violência na Europa. Repare: inflação, corrupção, desemprego, migração, tudo isto é uma mistura explosiva mesmo para um bloco tão democrático como a UE, constantemente assolado por problemas desde há anos – a pandemia da Covid-19 e depois o conflito na Ucrânia. É uma combinação de dinamite e se olharmos para a história, a corrupção, inflação, descrédito institucional, guerras de proximidade, medo e insegurança do desemprego, fluxos migratórios, não me admiraria que a violência chegue à Europa”, concluiu.