«Os portugueses enganam-se quando julgam ser cidadãos de pleno direito»

Há anos que o geógrafo Álvaro Domingues “cartografa” as dinâmicas sociais. É com contundência que diz que andamos todos meio perdidos, desde a agenda mediática, à noção do “país real”. Os tempos são «de navegação à vista», e é urgente começar a saber construir perguntas.

O “país real”, o que é, onde está?

Essa expressão é pro­blemática. O “país real” é muitas vezes referido nos meios de comunicação social para mostrar o que habitual­mente não se mostra. Mas não se sabe qual é a parcela do “país real” que o país contém. Habi­tualmente, vai desde o anedótico ao improvável. É uma expressão sem fundamento, cujo único di­visor comum é não ser um tema habitual da agenda mediática, que é lisboacêntrica, e que tem na política e no futebol os seus principais conteúdos. Depois de apanhar um deputado em falso, um ministro a contradizer-se, uma declaração fora do sítio, um treinador que se despediu, mais umas coisas internacionais e, eventualmente, uma notícia de “faca e alguidar”, fica o Portugal real, mas atirado para o fim.

E em que é que se traduz esse fim?

A posta que resta. A expres­são “país real” já em si é uma contradição; se fosse levada à letra, deveria resultar numa vi­são mais objectiva daquilo que existe. Nunca saberemos o que significa. A realidade é muito complexa e as imagens sim­plificadas que se mostram de um país ou de uma situação são muito redutoras. Há o genérico por um lado, e as curiosidades por outro, que fazem parte da expressão “país real”.

Onde é que se deveria investir?

Conhece-te a ti mesmo, cito o aforisma grego. Dever-se-ia in­vestir no conhecimento do que realmente é o país, os portu­gueses. Andam todos à procu­ra de imagens que preencham determinadas ideias feitas. Sou de Melgaço, onde decorre o Fes­tival Filmes do Homem, e como coordenador do projecto “Quem somos os que aqui estamos em trânsito?” verifiquei que, por ser um município de fronteira, os realizadores focaram-se no con­trabando, na imigração, no tema da fronteira. Ora, estes três temas estão fora de época. A questão da imigração, hoje em dia, não é fa­lar do passado, mas sim do futuro. Houve gerações que imigraram, pensando que um dia voltariam, e por isso construíram casas, mas depois a vida não aconteceu assim. Não seria muito mais in­teressante tentar perceber quem são as pessoas que estão aqui, longe dessas ideias feitas? Fala­-se em portugalidade, o que é? Quase 4/5 do país está num esta­do de flutuação, e parece que não temos consciência disso. Olhamos para a realidade com os nossos lugares comuns, e vamos pisan­do neles, e, de tanto pisar, estes acabam por tornar-se verdade e rigidificam-se.

Reportando a essa flutuação, quais as perspectivas?

Há quem tenha uma visão pessi­mista, porque o país está a ficar esvaziado; uma verdade. Esse fenómeno de perda traz consi­go desequilíbrios demográficos complicados, como o envelhe­cimento. E se as famílias estão divididas, os idosos ficam sem apoio, a situação torna-se muito complicada. Mas depois, olhan­do para os portugueses que estão por esse mundo fora, pode ser optimista. Até se viu o Marcelo a decidir comemorar o 10 de Junho exactamente nesses locais mais povoados por portugueses. Ou seja, dominam estas duas visões. Depois, há uma terceira, de con­junctura, que é da última leva de imigração, dos tempos duros da troika, que levou muitos jo­vens diplomados a deixar o país. Como professor universitário, tenho contacto com essa gera­ção, e ouço-os. As opiniões são as mais diversas. Uns acham que é uma situação a prazo, e que, resolvendo a sua situação, vol­tam ao país. Outros dizem que o mundo é muito vasto, num con­texto de globalização; ponde­ram não voltar. Vejo nestes um sentido de pertença, de territo­rialidade, de portugalidade di­ferente daqueles que acham que ser português é nascer e morrer em Portugal, ou comer bacalhau. Até poderão mudar de ideias, quando quiserem assentar, mas terão de questionar se há condi­ções para regressar. Por conse­guinte, não há como responder. O futuro nunca foi tão opaco, é uma equação do presente. Vive­mos tempos acelerados, com­plexos, inconstantes, o que difi­culta o exercício da futurologia. Tudo é pensado a curto prazo, e compreende-se.

Diz isso com tranquilidade, mas deverá haver situações que o revoltam…

Claro que há. Mas tenho este feitio, uma estratégia para vi­ver, para não ficar deprimido. Não me vale de muito andar num fadinho, a lamentar-me todos os dias. Muito menos face ao meu dia-a-dia como professor. Tenho de chegar à sala de aula de cara alegre. Mas eles já sabem, para eles o futu­ro não existe. Não estou a dizer que esteja bloqueado, mas para eles não é um problema, pen­sam muito no momento, a cur­to prazo. Por isso, ao contrário das gerações anteriores, como o meu pai, que estava sempre a perguntar pelas notas, pelas perspectivas de emprego, vivia nesta ansiedade, a mim não me ocorre perguntar isso aos meus filhos. Se estão felizes, e acham que tudo se vai resolver, eu fico feliz também. Se formos fata­listas, o mundo torna-se ainda mais complicado. Sentir-me-ia um desgraçado. Ser optimista é uma boa terapia. Não é o mesmo que ser tontinho, ou irrespon­sável, ou irrealista. O optimis­mo é tendencialmente saudável.

 Face ao que observa, quais é que deveriam ser as prioridades do Estado?

Há tantas matérias, desde a po­lítica financeira à saúde, mas o Estado está a mudar muito. A minha geração viveu tudo em modo acelerado, desde a dita­dura. Depois veio a revolução. Muitos pensavam que Portugal ia entrar na esfera do socialis­mo real da União Soviética, mas assistimos à consolidação da democracia, estávamos na CEE, começou a chover dinheiro, e rapidamente começou a cons­trução do Estado social, em que o Estado teve um papel imen­so na regulação da vida, como aquela música do Sérgio Godi­nho — “a paz, o pão, habitação, saúde, educação” (Liberdade). E para quem não tiver memória longa, é a ideia de Estado que nos foi prometida, e em parte reali­zada, durante o período de cons­trução do Portugal democrático, antes da crise. A crise veio de forma muito cruel. Se formos a ver aquilo que passou das mãos do Estado para a esfera privada, já em pleno processo de globa­lização, tudo o que era o sector empresarial do Estado, tudo o que era o monopólio do Estado… Portugal tinha uma moeda e uma política cambial, deixou de ter. Com os acordos de Schengen, de comércio livre, vivemos num tempo em que não vale a pena o Estado dizer que para proteger as maças portuguesas vai impe­dir a importação das argentinas, isso não vai acontecer, por causa dos tratados internacionais.

 … o Estado perdeu a centralidade?

Toda. De actor principal de re­gulação das políticas públicas, transformou-se num actor en­tre muitos, e frágil, por não ter dinheiro. E com o progresso do neoliberalismo, começamos a pregar que o que era bom era menos Estado, e todas estas ló­gicas centradas no individuo, no empreendedorismo, que o Es­tado só estorva, é burocrático, cobra impostos. Caiu-se numa contradição face a um Estado mínimo, que mal consegue fi­nanciar os sistemas. É paradoxal invocar o Estado — como quem invoca o nome de Deus em vão — numa altura em que não sa­bemos o que é que o Estado pode. Produzimos muitas postas de pescada a dizer o que é o Estado deve (fazer), mas não sabemos o que é que pode.

 E o papel do cidadão?

Os portugueses enganam-se quando pensam ser cidadãos de pleno direito, isto é, que aquilo que está na Constituição, que define os direitos e deveres de cidadania, tem condições para ser respeitado e cumprido. Mas, lá no fundo, o cidadão sabe que não. Muitas coisas não têm nada a ver com o Estado, mas sim com serviços privados. Por exem­plo, quando discuto as tarifas da EDP deixo de ser cidadão e passo a cliente, e ainda há uma terceira categoria: o utente. An­damos muito baralhados. Mas há que não esquecer que Portu­gal mudou mais nos últimos 30 anos que em toda a sua história. Foram as acessibilidades, a rede eléctrica, as telecomunicações, as escolas, o sistema de saú­de. E isso criou a ideia do Esta­do previdente. Muito ainda se mantém, embora precariamen­te. Recorre-se muito à palavra decalcada que é a sustentabili­dade. O facto de termos entrado em contra-ciclo, quando o resto da Europa já estava a desfazer o Estado social, como a Thatcher no Reino Unido, reforçou outra vez a ideia de um Estado protec­tor. E, portanto, deu uma sobre­vida à ideia de que o Estado está lá para cuidar de nós.

 Agora já há quem diga que nos tempos de Salazar é que era bom…

É muito perigoso esse saudo­sismo. O que as pessoas estão a dizer, provavelmente, é que gostavam que a situação fosse mais estável, e que o futuro fos­se menos incerto. Não estão a pensar no outro lado da factura. A emergência dos populismos e dos ditadores acontece normal­mente em períodos de grande insegurança e instabilidade. Há sempre aquela pulsão de ver em qualquer governo a salvação, como no Brasil. Recuso-me a acreditar que aqueles milhões estavam a votar num fascista. Recuso-me. Estavam a fazer do seu voto uma forma de protesto. Queremos uma coisa que fun­cione, que dê a sensação de que alguém segure isto, mesmo que seja um palhaço.

Uma mensagem de alento…

Não me canso de dizer aos alunos que o mundo nunca esteve tão aberto e que também, por via das tecnologias, nunca houve tanta informação, tanta facilidade de aceder a essa informação, em­bora isso também não seja assim tão simples. Não é só perguntar ao Google, que é como dizem “é melhor que Deus, porque res­ponde sempre”, que a respos­ta está lá clarinha; não é assim. Esta geração mais nova tem de ter uma atitude mais crítica face ao conhecimento da realidade. A escola está a falhar em formar um espírito mais analítico. Em vez de decorar coisas sobre o que seja o mundo, como quem decora fórmulas físicas, temos de per­ceber que não há uma só versão, uma só resposta, e que o pen­samento crítico é aquele que é capaz de fazer perguntas. É pre­ciso exercitar muito a chamada navegação à vista. Não temos aparelhos sofisticados para na­vegar longinquamente e que nos permitam conceber estratégias bem montadas para saber onde vamos estar daqui a cinco anos. Não temos!

Saber construir perguntas, é isso?

Precisamente, e quase em cima do acontecimento. Temos de estar muito atentos à realidade, pensar no que devemos procu­rar para aumentar as hipóteses de ter um projecto de vida. E não estar apenas atado, como vejo, nestes movimentos da Natureza e de não sei o quê. Não percebo aquelas almas, parecem-me uns neo-hippies, mas ainda mais re­tintos, com uma visão romântica do mundo, assim como as suas causas. E onde ficam os pobres, a injustiça, os desgraçados? Ago­ra é só os animais e a natureza e o carbono? Não entendo. Mas também, depois de andarem a ser martelados desde a pré-pri­mária, o lixo, o não sei que mais, claro que só podia dar nisto. E vivem num tempo em que é fá­cil criar cenários apocalípticos, com o aquecimento global, as alterações climáticas, acreditam que é com pequenos gestos que vão resolver tudo. Uma tontice.

Mas não sendo assim…

Quando surge uma questão, a melhor forma de a perceber é fa­zer a estatística, perceber quem é que produz o CO2, e assim logo se vê se isto é um problema muito meu ou se o plástico que aparece nas praias foi produzi­do aqui. Não foi! Esse assunto já foi estudado, 80% dos plásticos entra nos oceanos por três rios: o que vem da China, da Índia e de África. Mas isto acontece em quase todas as questões am­bientais; são globais, mas não se faz ecologia política. É muito mais fácil designar entidades abstractas, como o individuo, as pessoas, o homem, e pensar que a Terra é como uma nave espacial. Mas não é. Não tem comandante, não se sabe para onde vai. Veja-se África, uma desgraça, há problemas incríveis que não desatam.

 É certo, cada vez menos se fala de África…

Claramente. Aliás, um efeito colateral da agenda ambien­tal é que pelos vistos a pobreza do mundo está resolvida. Tudo isto é paradoxal, um entretém. Não se fala porque se calhar não convém. Até porque, pelos vis­tos, não há nenhuma institui­ção a nível mundial que tenha poder a nível global. Dantes ha­via a ONU, que ainda mandava qualquer coisa; agora nem essa. Tudo tem a ver com determina­dos poderes que vão imergindo, como a China, ou de políticas por parte de países muito importan­tes, como os EUA, que ora viram para ali ou para acolá. Não vejo onde é que está a tal concerta­ção. Ainda agora houve a cimei­ra do clima na Polónia, e até se pode tentar encontrar soluções, mas quem é que vai organi­zar a agenda? O que sabemos da evolução do globo é que já houve tantas mudanças climá­ticas, mas intervaladas sempre em centenas de milhares ou de milhões de anos. Na última gla­ciação, Portugal estava todo de­baixo de uma calote de gelo. Não foi assim há tanto tempo, geolo­gicamente falando. Será que de repente os processos geológicos do Antropoceno entrarem em modo acelerado e começámos a pensar as eras geológicas como relógios? Parece-me estranho. Há uma visão muito enviesada da realidade.

Será que as pessoas se sentem de tal forma manietadas que ao fazerem parte destes movimen­tos acham que conseguem fazer a diferença?

É isso que se dá como justifica­ção. Porque perderam as posi­ções políticas. Viemos de uma ideia de democracia construída sobre instituições, sistemas de direito, achávamos que havia uma vontade colectiva e uma forma de a organizar através do voto. Foi isto que nos foi ensina­do. Hoje, há uma desconfiança muito grande neste sistema, e fundamentada, porque o sistema se anquilosou, foi tomado de as­salto, e está visto que há outros interesses. Não foi o sistema em si que se suicidou, mas há umas videirinhas que entram nele e forçam-no para outro lado. E se há uma descrença muito grande nessa expressão do sentido co­lectivo, as pessoas, como dizem os sociólogos, tribalizam-se — os vegetarianos, homossexuais, budistas, com a facilidade de que é possível organizar essas pseudo-comunidades porque há redes sociais. E através dos “likes”, convencem-se que es­tão a viver as causas. Na reali­dade, o que acontece é que esta­mos a confinar o nosso campo de crenças e de pertença e a afastar os outros. É cada vez mais fácil encontrar esses fenómenos, da pessoa que identifica a sua iden­tidade social designando grupos. Mas onde fica a pertença num colectivo acima desse?

E não há resposta…

Não há. Ou não interessa. Veja­-se a facilidade com que se diz “as pessoas”, ou fazemos isto para as pessoas, ou o importante são as pessoas. Ora, a pessoa não é uma entidade política. Quem são? Não faço ideia. Dez polícias, 50 ladrões, 20… Banalizou-se o conceito de comunidade. No Velho Mundo, todos tinham as mesmas crenças, os mesmos va­lores. E quem não os tinha, que se pusesse a pau. A comunidade era o melhor para a entre-aju­da, mas também o pior se fosse para dar cabo da vida de alguém. Porém, representava uma so­ciabilidade muito bem definida, sem estereofonia, havia acordo das visões do mundo, das cren­ças, dos valores. Olhando agora para a sociedade, é exactamente o oposto. Vivemos numa diver­sidade impressionante. Os mais velhos dizem até que é perigo­síssimo, que já não há valores. Ou até porque determinados bastiões que definiam a moral, como a Igreja, ou uma deter­minada orientação, desapare­ceram. Ou porque muitas coisas se privatizaram.

Dito isso, há valores?

Há! A questão é como é que se partilham. Todos têm valores, obviamente. Basta ver quando se discute as touradas, a eutanásia, a violência doméstica, percebe­-se que há valores. Agora, não se percebe é qual é a hierarquia, a distribuição social, se são to­dos defendidos da mesma ma­neira. Antigamente, apesar de todas as contradições, as linhas eram claras. Hoje não, hoje tudo flutua, é tudo muito mais… a “modernidade líquida”, era as­sim que lhe chamava o filósofo Zygmunt Bauman, usando uma metáfora no sentido em que os líquidos não conseguem segurar a forma. E é verdade, não é ape­nas uma figura de estilo literá­rio. Anda toda a gente a procurar ler os sinais. E então, criam-se mecanismos, como as audições públicas, os orçamentos partici­pativos, os abaixo-assinados, de tudo aquilo que é opinativo. Com isto, posso, por exemplo, obrigar a AR a discutir um determinado tema, é uma resposta à diversi­dade da sociedade, dos valores e das hierarquias dos valores. E não faço a mínima ideia até onde é que vai essa elasticidade. É uma incógnita do presente.