O Banco Central Europeu (BCE) identificou três grandes ameaças à estabilidade financeira da zona euro e um fator potenciador que, em conjunto, podem evoluir de uma crise localizada e controlável para uma crise sistémica total. O aviso foi feito pelo vice-presidente do BCE, Luis de Guindos, num discurso recente em que analisou a vulnerabilidade do sistema financeiro europeu e global.
A economia mundial cresce atualmente a um ritmo relativamente lento para os padrões das últimas décadas, enquanto a dívida pública se expande e as tensões geopolíticas aumentam. Apesar deste cenário, os mercados continuam a negociar próximos dos máximos históricos, num fenómeno que organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), descrevem como uma desconexão entre risco real e valorização dos ativos. De Guindos sublinha que esta situação eleva o potencial de uma instabilidade abrupta.
Elevada valorização de ativos e o risco da inteligência artificial
A primeira vulnerabilidade destacada pelo BCE está relacionada com os elevados preços de determinados ativos financeiros, especialmente nas bolsas internacionais, e com a crescente influência da inteligência artificial (IA). De Guindos alerta que “os mercados financeiros continuam vulneráveis a ajustes bruscos e correlacionados nos preços de ativos. O renovado otimismo após a recuperação desde os mínimos de abril impulsionou ainda mais as elevadas valorizações”.
O vice-presidente ressalva que a concentração do mercado e a interconexão entre grandes empresas tecnológicas dos EUA expõem o sistema a riscos associados a perturbações nos modelos de negócio ligados à IA. Investidores como Michael Burry, conhecido por antecipar a crise das hipotecas subprime em 2007, alertaram recentemente para potenciais bolhas neste setor. Enguerrand Artaz, gestor de fundos na La Financière de l’Échiquier, reforça a preocupação: “Quando preocupa uma possível bolha num contexto de grandes inovações tecnológicas, é natural que venham à memória os paralelismos com a burbuja puntocom”.
O volume de investimentos na IA é impressionante: estima-se que as empresas nos Estados Unidos destinem entre 400 e 500 mil milhões de dólares à construção de centros de dados em 2025, criando uma enorme procura de energia e aumentando o risco de sobrevalorização de ativos. Estrategas da BCA Research alertam que esta bolha pode atingir o pico nos próximos seis a doze meses, reproduzindo padrões históricos de frenesís de investimento, com previsões de rendimentos excessivamente otimistas e elevada dependência de financiamento por dívida.
A dívida pública como vulnerabilidade crescente
A segunda vulnerabilidade apontada pelo BCE é a elevada dívida pública em países do euro e nos Estados Unidos. De Guindos alerta que “em alguns países da zona euro, os níveis de dívida ainda são elevados e os déficits orçamentais continuarão nos próximos anos. O incumprimento das regras fiscais pode testar a confiança dos investidores, especialmente em países com instabilidade política”. A pressão sobre as finanças públicas e os elevados gastos previstos, incluindo na defesa em linha com os objetivos da NATO, podem agravar a perceção de risco soberano e gerar tensões nos mercados globais de obrigações.
O perigo da banca em sombra
A terceira vulnerabilidade centra-se na chamada “banca em sombra”, entidades financeiras que operam fora da supervisão direta e sem cumprir integralmente as normas de Basileia. De Guindos alerta que, embora este setor ainda seja menor que a banca tradicional da zona euro, o seu crescimento acelerado e o elevado grau de alavancagem podem transformar crises localizadas em crises sistémicas. “O crescimento sustentado, aliado ao apalancamento, opacidade e complexas interconexões, pode ser o fator chave que transforma uma crise localizada numa sistémica”, afirma.
O BCE destaca que a interconexão crescente entre bancos tradicionais e entidades não bancárias aumenta a vulnerabilidade do sistema, mesmo perante a resiliência demonstrada pelos bancos da zona euro em crises recentes. A potencial deterioração da qualidade do crédito e o aumento das provisões necessárias para cobrir impactos económicos podem amplificar o risco sistémico.
Para De Guindos, as condições financeiras globais, impulsionadas sobretudo pelo mercado norte-americano, onde a dívida pública não para de crescer e as valorizações estão elevadas, constituem desafios para a estabilidade europeia. A fragmentação geoeconómica e regulatória, bem como a persistência de tensões geopolíticas, aumenta a probabilidade de eventos adversos extremos com impacto global. O efeito riqueza, que estimula consumo e investimento durante períodos de valorização elevada de ativos, pode inverter-se rapidamente e originar impactos severos na economia real, como aconteceu na crise financeira de 2007-2008.
Especialistas do setor reforçam estas preocupações. Giordano Lombardo, da Plenisfer Investments, alerta que “a concentração excessiva de investimentos, mesmo em setores transformadores como a IA, acaba provocando má alocação e colapso de expectativas de rentabilidade”. A combinação de elevados preços de ativos, dívida pública crescente e expansão da banca em sombra torna, segundo o BCE, o sistema financeiro europeu particularmente vulnerável a choques simultâneos.













