Por Nelson Pires, Diretor geral da Jaba Recordati e Presidente da Fundação Marquês de Pombal
Portugal vive num ciclo vicioso de diagnósticos sem tratamento. O problema do Estado não é técnico — é político. Há décadas que sabemos o que precisa de ser feito: modernizar, simplificar e responsabilizar. O que falta, invariavelmente, é coragem. Desde o início do século que se sucedem programas de reforma administrativa, todos anunciados com entusiasmo e todos abandonados a meio caminho. O Simplex prometia um Estado ágil e digital; o PREMAC pretendia racionalizar estruturas e eliminar redundâncias; e agora, o programa de modernização administrativa liderado por Gonçalo Saraiva Matias regressa com a mesma ambição — tornar o Estado mais eficiente, mais transparente e mais próximo dos cidadãos.
Há, contudo, uma diferença relevante: o atual ministro parece compreender bem a natureza do problema. Identifica com clareza o que está mal e aponta soluções concretas, desde a digitalização transversal à simplificação da lei dos contratos públicos e à introdução de mecanismos de avaliação efetiva na administração. Talvez por isso, este programa mereça o benefício da dúvida. Falta saber se resistirá à força da inércia, à resistência interna e à velha tradição de prometer reformas que morrem entre comissões e pareceres.
A digitalização do Estado continua a avançar aos solavancos. Multiplicam-se portais e plataformas, mas continuam a coexistir com carimbos, filas e requerimentos em triplicado. A interoperabilidade entre serviços públicos é uma promessa repetida, nunca uma realidade consolidada. O acesso digital devia ser direto, transparente e imediato — em vez disso, é um labirinto eletrónico onde o cidadão se perde entre formulários, senhas e autenticações redundantes.
Na função pública, a meritocracia continua a ser um mito confortável. Fala-se em avaliação de desempenho, mas quase todos são avaliados como “bons” ou “muito bons”. O recrutamento baseia-se mais em redes informais do que em mérito, e a progressão depende sobretudo do tempo de serviço. O Governo evita tocar no essencial: sem premiar quem cumpre e responsabilizar quem falha, o Estado continuará a funcionar em piloto automático.
As compras públicas são outro caso de paralisia institucional. O Código dos Contratos Públicos, criado para garantir rigor, tornou-se um obstáculo à eficiência. Reformá-lo é urgente, mas politicamente arriscado. Reduzir burocracia, automatizar processos e responsabilizar quem decide são medidas consensuais — e, por isso mesmo, frequentemente adiadas.
A justiça, por sua vez, continua a ser o retrato mais fiel da lentidão portuguesa. Processos arrastam-se durante anos, decisões chegam tarde, e ninguém responde pelos atrasos. Fala-se em digitalização e reorganização, mas o essencial continua por fazer: prazos vinculativos, simplificação processual e responsabilização efetiva.
A descentralização, apresentada como bandeira de modernização, ficou a meio caminho. Passam-se competências sem orçamentos, responsabilidades sem autonomia. O Estado central continua a decidir de longe, e os municípios continuam a pedir de perto. É a descentralização do discurso — não da prática.
O mesmo acontece com a simplificação fiscal. Todos concordam que o sistema é excessivamente complexo, cheio de exceções e regimes especiais, mas ninguém o simplifica. Uma reforma fiscal exigiria coragem política: menos burocracia, mais previsibilidade e um sistema digital único e acessível.
O país não sofre de falta de planos, sofre de falta de execução. As medidas necessárias estão identificadas há décadas: digitalizar de forma plena e integrada, avaliar o desempenho de forma séria, simplificar a contratação pública, impor prazos vinculativos na justiça, descentralizar com meios reais e simplificar o sistema fiscal. Tudo o resto é variação sobre o mesmo tema — anunciar, discutir e adiar.
A lentidão institucional é uma marca nacional. A Barragem do Alqueva demorou mais de meio século. O novo aeroporto de Lisboa já teve mais localizações do que um GPS e continua por decidir. A exploração do lítio arrasta-se há uma década entre pareceres e bloqueios. E a União Europeia demorou cinco anos a decidir que as tampas das garrafas deviam ficar presas — enquanto o oceano continua cheio de plástico.
O Estado português não é irreformável. Falta-lhe apenas o ingrediente que nenhuma lei pode impor: coragem. Coragem para enfrentar interesses instalados, coragem para assumir decisões impopulares, coragem para fazer o que todos sabem que tem de ser feito. O Simplex e o PREMAC mostraram que o diagnóstico estava certo, mas a execução falhou. O atual programa, liderado por Gonçalo Saraiva Matias, merece o benefício da dúvida precisamente porque parte de um diagnóstico lúcido e tecnicamente sólido. Se for acompanhado de determinação política, poderá finalmente quebrar o ciclo de promessas incumpridas. Se não for, ficará apenas como mais um capítulo na longa história da reforma que nunca chega.




