Polémica lei dos solos vai hoje ao Parlamento: Governo procura entendimento com PS para “melhorar” diploma
A Assembleia da República vai apreciar, esta sexta-feira, o decreto do Governo para a revisão da lei dos solos, uma iniciativa do Bloco de Esquerda que teve o apoio do PCP, do Livre e do PAN, na sequência das manifestações públicas contra o diploma, nomeadamente de organizações de defesa do ambiente, academia e órgãos profissionais, com vista à revogação do decreto-lei.
A alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), que permite a construção em terrenos rústicos e cuja entrada em vigor está prevista para o final do mês, destina-se, segundo o Governo, a permitir maior disponibilidade de terrenos para construção, facilitando “a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis”.
No entanto, o Governo está aberto a fazer ajustamentos ao decreto-lei que veio alterar o RJIGT, de forma a conseguir o apoio do Partido Socialista (PS) e assegurar a vigência deste diploma. A garantia chegou do ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, que rejeitou que as alterações aprovadas recentemente pelo Governo favoreçam a especulação imobiliária.
O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Miguel Pinto Luz, reiterou que o Governo tem “total abertura para fazer uma discussão séria” sobre a lei dos solos, mostrando disponibilidade para a “adaptar, melhorar”. “Não temos nenhum preconceito em relação a isso, mas também não temos nenhuma soberba que temos a verdade absoluta”, assegurou no Parlamento, numa audição a pedido do BE. Miguel Pinto Luz considerou que a lei dos solos não é a “bala de prata que vai resolver todos os problemas”, mas defendeu que “vai baixar os preços na habitação”.
Publicado no passado dia 30, o diploma tem sido alvo de críticas por parte de milhares de especialistas dos setores da habitação, arquitetura, urbanismo, ambiente ou engenharia, que têm alertado para riscos relacionados com a dinâmica de preços da habitação, que poderão vir a aumentar, bem como com possíveis impactos ambientais negativos.
Fabian Figueiredo acusou o PSD de estar “a esquartejar” uma lei da autoria do antigo ministro social-democrata Jorge Moreira da Silva e defendeu que o atual Governo pretende uma revisão da lei dos solos que “incentiva a especulação imobiliária, agrava as condições de combate e de prevenção aos efeitos das alterações climáticas e promove o desordenamento do território”.
“O Bloco de Esquerda e um conjunto de deputados do PCP, do Livre e do PAN entregaram uma apreciação parlamentar para que esse mesmo decreto-lei, que nunca devia ter visto à luz do dia, que devia ter sido vetado pelo Presidente da República, seja discutido na Assembleia da República. Este decreto-lei deve ser chumbado pela Assembleia da República e é agora o momento dos partidos se pronunciarem como votarão a apreciação parlamentar”, declarou Fabian Figueiredo.
O líder parlamentar do Bloco de Esquerda afirmou ainda que “urbanistas, pessoas da área do direito, ativistas contra a corrupção e cidadãos que refletem sobre a forma como o território deve estar organizado para enfrentar as alterações climáticas têm caracterizado a lei do Governo como uma catástrofe”.
“É uma catástrofe porque promove a especulação imobiliária, porque não prepara o país para a mitigação dos efeitos das alterações climáticas e porque promove o desordenamento do território”, acrescentou.
Convite à corrupção, garante associação Frente Cívica
A associação Frente Cívica escreveu uma carta aos partidos representados no parlamento, apelando à revogação da “ignóbil trafulhice” do diploma que permite reclassificar terrenos rústicos em urbanos, alertando que leva “a práticas corruptivas”.
“Os amplos poderes de alteração do uso de solos previstos no decreto-lei são ilegítimos, porque lesam gravemente o ordenamento do território. Para além disso, constituem previsível – aliás, inevitável – lastro de corrupção”, escreveram aos deputados o presidente e vice-presidente da associação, Paulo de Morais e João Paulo Batalha.
“Se vier a entrar em vigor, esta legislação virá provocar alterações abruptas nos planos diretores municipais e violar a coerência, previsibilidade e segurança jurídica do ordenamento territorial, fazendo perigar um dos princípios basilares da democracia local”, refere-se na missiva, a que a Lusa teve acesso.
Para a Frente Cívica, a “permitir-se este mecanismo, e as enormes margens de discricionariedade de decisão que consagra, iremos nos próximos tempos assistir a uma corrida a terrenos rústicos por parte dos promotores imobiliários próximos do poder autárquico”, que “irão adquirir solos rústicos a preço de saldo” e, de seguida, “transformá-los em solo urbano para construírem o que bem entenderem”.
“Estas operações urbanísticas valorizarão os solos em seis ou sete vezes. Margens desta dimensão (600% ou mais) só se obtêm no tráfico de droga de alto nível e, agora, no urbanismo”, alertou o movimento de cidadãos.
“Em ano de eleições autárquicas, os ‘patos-bravos’ do imobiliário ganharão certamente milhões em manobras de valorização administrativa de terrenos, antes até de construírem uma única casa nos solos reclassificados. Inevitavelmente, uma pequena parte dos seus lucros irá financiar os seus cúmplices, os autarcas e os partidos que se candidatam nas eleições deste ano”, acrescentou.
No entanto, para a associação que promove a denúncia dos riscos da corrupção, se a legislação entrar em vigor no final do mês, 30 dias após a sua publicação, “irá ainda permitir que algumas operações urbanísticas ilegais, eventualmente autorizadas nos últimos anos, sejam agora legalizadas, ao abrigo do princípio de aplicação da legislação mais favorável”.
“Desta forma, o decreto-lei 117/2024 não só incentivará novos assaltos ao território, mas funcionará também como amnistia de crimes já perpetrados”, consideraram Paulo de Morais e João Paulo Batalha.
Por outro lado, na carta salienta-se que os terrenos que beneficiarem dessas valorizações serão, em 30%, comercializados livremente, ao valor de mercado e os “restantes 70% terão de ser utilizados para habitação pública ou, alternativamente, em habitação de valor moderado”, que “pode atingir valores até 125% da mediana de preço de venda para o concelho de localização, ou seja, pode ser superior ao próprio valor de mercado”.
Legislação que designa “como moderado um valor superior ao valor de mercado é, só por isso, enganadora” e “que permite ganhos milionários aos especuladores do urbanismo e aos autarcas que aceitam ser seus cúmplices leva a práticas corruptivas”, apontou a associação.
“O diploma que é agora levado à apreciação da Assembleia da República é por tudo isto inaceitável e irreformável. Não deve ser ‘melhorado’ com alterações cosméticas que se limitariam a dar nova roupagem ao mesmo assalto aos bens públicos e ao território nacional”, referiu a Frente Cívica, defendendo que o decreto-lei “deve ser pura e simplesmente revogado”.
Para Paulo de Morais e João Paulo Batalha, o diploma que altera o RJIGT “é uma ignóbil trafulhice” e, por isso, apelaram ao parlamento para livrar o país dela, “em vez de consagrar para a História este crime legislado”.
Ambientalistas protestam e pedem revogação do diploma
Mais de duas dezenas de organizações não-governamentais de ambiente (ONGA) exigiram a revogação do diploma que altera a lei dos solos, anunciando que vão pedir uma audiência ao Presidente da República para discutir a questão.
Num comunicado subscrito por 21 organizações e divulgado pela LPN – Liga para a Proteção da Natureza, os ambientalistas consideram que o diploma “não resolve o problema da habitação”, justificação dada pelo Governo para a sua aprovação.
A alteração ao RJIGT, que permite a construção em terrenos rústicos e cuja entrada em vigor está prevista para o final do mês, destina-se, segundo o Governo, a permitir maior disponibilidade de terrenos para construção, facilitando “a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis”.
Além disso, destacam as ONGA, o decreto-lei “traz risco de degradação da Rede Natura 2000, da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e da Reserva Ecológica Nacional (REN), e impõe riscos acrescidos para pessoas e bens”.
“Ao criar nos mercados fundiários expectativas de valorização súbita dos terrenos por via de loteamentos avulsos, este decreto-lei irá agravar os custos da habitação e das infraestruturas urbanas, ao mesmo tempo que prejudica a agricultura, a silvicultura e a conservação da Natureza”, precisam.
Os ambientalistas afirmam que o diploma “não se encontra suportado em estudos, dados ou fundamentação científica”, notando que “a ausência de fundamentos que o justifiquem” já foi demonstrada pelo Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, urbanistas, arquitetos paisagistas e inúmeros especialistas.
A alteração ao RJIGT foi promulgada pelo Presidente da República, apesar de Marcelo Rebelo de Sousa ter considerado que a lei constitui “um entorse significativo [sic] em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”.
Segundo as ONGA, a alteração não ajudará a resolver a crise da habitação, porque o problema não está na falta de solos urbanos, dado que “a proporção de solo urbano não artificializado é superior a 50% e, pelo menos, 12% do total de habitações encontram-se devolutas”.
A solução para a crise da habitação, sustentam, passa “por uma análise cuidada ao Ordenamento do Território” e pela aplicação de estratégias como a de atribuir à “administração pública a prerrogativa de lotear, subtraindo-a aos particulares”, e “utilizar vigorosamente a tributação do património imobiliário de modo a incentivar o seu aproveitamento em tempo útil e a desencorajar atividades especulativas”.
Ambas mostraram “resultados positivos nos países mais desenvolvidos que merecem ser tomados como exemplo a seguir”.
Subscrevem o comunicado, além da LPN, o GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza, ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, Almargem – Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve, AAMDA – Associação dos Amigos do Mindelo pela Defesa do Ambiente, CPADA – Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente e Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural, entre outros.