Juiz julgado por violência contra a mulher (também magistrada) e por lhe reter o ordenado

Um juiz de 51 anos, a exercer no distrito de Viseu, vai ser julgado por três crimes de violência doméstica contra a sua ex-mulher, igualmente magistrada, e os dois filhos do casal. Ao longo de duas décadas, o magistrado terá mantido um comportamento abusivo, tanto física como psicologicamente, culminando em 2021 com a exigência de que a sua então esposa transferisse o seu ordenado para uma conta bancária de que apenas ele era titular, deixando-a dependente dele até para as despesas mais básicas.

Segundo a acusação do Ministério Público (MP), citada pelo Público, as agressões começaram logo após o nascimento do primeiro filho do casal, quando o arguido agarrou a vítima pelo pescoço e a projetou contra um armário enquanto ela segurava o bebé ao colo. A partir deste episódio, o comportamento violento tornou-se uma constante. A juíza, por vergonha, nunca procurou assistência médica, embora tenha consultado um especialista devido ao início de uma depressão.

Em várias ocasiões, o magistrado terá insultado a mulher, usando termos como “estúpida”, “puta”, “preguiçosa de merda”, entre outros. Em público, criticava a sua aparência e chegou a proibi-la de voltar à praia após umas férias em 2010, alegando que o local “era para pessoas bonitas e não deformadas como ela”.

Em 2021, um dos episódios mais significativos de controlo financeiro ocorreu quando o juiz exigiu que a esposa transferisse o seu vencimento para uma conta bancária da Caixa Geral de Depósitos, de que apenas ele era titular. Segundo a acusação, a juíza passou a ter de pedir dinheiro ao marido para as despesas diárias, pedidos que nem sempre eram atendidos de forma favorável. Esta retenção do ordenado intensificou a dependência da vítima, num claro exercício de controlo económico.

Os relatos descritos pelo MP referem vários episódios de agressões físicas, incluindo momentos em que o arguido tapou a boca da mulher para a impedir de respirar, deixando-a quase inconsciente, enquanto gritava “Vou-te bater! Vou-te matar!”. A violência psicológica também era constante, com comentários humilhantes dirigidos tanto à esposa quanto aos filhos, que eram frequentemente agredidos com estalos e pontapés.

Os filhos, especialmente o mais velho, foram vítimas diretas dos abusos, com o MP a sublinhar que o comportamento do magistrado “criou um clima de medo permanente e um ambiente de terror nocivo ao desenvolvimento emocional” dos mesmos.

A magistrada pediu a separação em 2021, o que levou o juiz a afirmar aos filhos: “Tirei a vossa mãe da prostituição e fiz dela uma senhora, e agora ela agradece-me indo embora”. Dirigindo-se à ex-mulher, ameaçou: “Não vais levar nada! Mais depressa te dou um tiro na cabeça!”. No ano seguinte, o agressor foi até ao gabinete da mulher, no Palácio da Justiça de Viseu, para lhe bater. A situação só não escalou devido à intervenção de uma funcionária judicial e ao facto de a juíza ter arremessado um livro volumoso contra ele.

Apesar da gravidade dos episódios relatados, o MP permitiu, a pedido das três vítimas, a suspensão provisória do processo, desde que o juiz se abstivesse de maltratar a família e frequentasse um curso para agressores. Contudo, a medida foi revertida depois de o magistrado ter continuado a enviar mensagens eletrónicas e de WhatsApp à ex-mulher e aos filhos, violando as condições impostas pela justiça.

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) instaurou um processo disciplinar contra o arguido, que, no entanto, continua a exercer a sua função no Palácio da Justiça de Viseu. A presidente da Comarca Judicial de Viseu, Isabel Emídio, esclareceu que, apesar dos episódios de violência, não há motivos para impedir o juiz de continuar a exercer, uma vez que ele está alocado à jurisdição cível e não há medidas de coação impostas que justifiquem qualquer alteração. “Os gabinetes de trabalho de ambos situam-se em pisos diferentes”, acrescentou a dirigente.

O magistrado arguido apresentou ainda uma queixa por violência doméstica contra a ex-mulher e tentou afastar a juíza que liderava o processo no Tribunal da Relação de Coimbra, alegando parcialidade. Após a rejeição do pedido, recorreu para o Tribunal Constitucional. Para além disso, moveu uma ação judicial contra a ex-cônjuge, exigindo a devolução de parte da pensão de alimentos dos filhos, que tinha sido decretada pelo tribunal.

O julgamento do caso ainda não tem data marcada, devido aos vários recursos apresentados pelo arguido.

Ler Mais