Está na altura de acabar com o termo “utilizador”
Por: Taylor Majewski, MIT Technology Review
Quando comecei a ver estes vídeos AMA há alguns anos, gostei deles. Mosseri respondia a perguntas técnicas como “Porque não podemos colocar links nas publicações?” e “A minha página de exploração não funciona bem, como resolver?” com um entusiasmo genuíno. Mas à medida que eu ia ficando mais atento, a autenticidade aparentemente improvisada de Mosseri começava a parecer comedida, como um sub-produto corporativo do seu título.
Numa sexta-feira recente, alguém felicitou Mosseri pelo sucesso do Threads, a aplicação de rede social que a Meta lançou no Verão de 2023 para competir com o X, escrevendo: «O Mark afirmou que o Threads tem mais pessoas activas hoje do que quando foi lançado – parabéns!» Mosseri, com uma camisola cor-de-rosa e a transmitir a partir de um espaço semelhante a uma garagem, respondeu: «Só para esclarecer o que isso significa, nós olhamos principalmente para os utilizadores activos diários e mensais, e temos agora mais de 130 milhões de utilizadores activos mensais.»
A facilidade com que Mosseri troca pessoas por utilizadores torna a mudança quase imperceptível. Quase. (Mosseri não respondeu a um pedido de comentário.)
Há muito tempo que as pessoas são designadas por “utilizadores”; é uma abreviatura prática aplicada por executivos, fundadores, operadores, engenheiros e investidores até ao infinito. Muitas vezes, é a palavra certa para descrever as
pessoas que utilizam software: um utilizador é mais do que um simples cliente ou consumidor. Por vezes, um utilizador nem sequer é uma pessoa; sabe-se que os bots empresariais gerem contas no Instagram e noutras plataformas de redes sociais, por exemplo. Mas “utilizadores” também não é suficientemente específico para se referir a quase todas as pessoas. Pode acomodar praticamente qualquer grande ideia ou visão a longo prazo. Usamos – e somos usados por – computadores, plataformas e empresas. Embora “utilizador” pareça descrever uma relação que é profundamente transaccional, muitas das relações tecnológicas em que uma pessoa pode ser considerada um utilizador são, na verdade, bastante pessoais. Assim sendo, será que o termo “utilizador” ainda é relevante?
“As pessoas eram como máquinas”
A utilização original de “utilizador” remonta aos dias dos computadores mainframe da década de 50. Uma vez que os computadores comerciais eram enormes e exorbitantemente caros, exigindo muitas vezes uma sala inteira e equipamento especial, eram operados por colaboradores formados – utilizadores – que trabalhavam para a empresa que os possuía
(ou, mais provavelmente, alugava). À medida que os computadores se tornaram mais comuns nas universidades duran-
te os anos 60, os “utilizadores” começaram a incluir estudantes ou qualquer outra pessoa que interagisse com um sistema informático.
Não era realmente comum as pessoas possuírem computadores pessoais até meados da década de 70. Mas quando o faziam, o termo “proprietário de computador” nunca se tornou realmente popular. Enquanto outras invenções do século XX, como os automóveis, eram coisas que as pessoas possuíam desde o início, o proprietário de um computador era simplesmente um “utilizador”, apesar de os dispositivos estarem cada vez mais integrados nos cantos mais íntimos da vida das pessoas. Com a escalada da computação na década de 90, surgiu também uma matriz de termos relacionados com o utilizador: “conta de utilizador”, “ID de utilizador”, “perfil de utilizador”, “multi-utilizador”.
Don Norman, um cientista cognitivo que se juntou à Apple no início dos ano 90 com o título de “arquitecto da experiência do utilizador”, esteve no centro da adopção em massa do termo. Foi a primeira pessoa a ter o que seria conhecido como UX no seu cargo e é-lhe atribuído o mérito de ter introduzido o conceito de “design da experiência do utilizador” – que procurava conceber sistemas que as pessoas os considerassem intuitivos – na corrente dominante. O livro de Norman de 1998, “The Design of Everyday Things”, continua a ser uma espécie de bíblia do UX, colocando a “usabilidade” a par da estética.
Norman, agora com 88 anos, explicou-me que o termo “utilizador” proliferou em parte porque os primeiros tecnólogos informáticos assumiram erradamente que as pessoas eram como máquinas. «O utilizador era simplesmente mais um componente», explicou. «Não pensávamos neles como uma pessoa – pensávamos neles como parte de um sistema.» Assim, os primeiros projectos de experiência do utilizador não procuravam tornar as interacções homem-computador “fáceis de utilizar”, por si só. O objectivo era encorajar as pessoas a concluírem tarefas de forma rápida e eficiente. As pessoas e os seus computadores eram apenas duas partes dos sistemas mais vastos que estavam a ser construídos pelas empresas de tecnologia, que funcionavam segundo as suas próprias regras e na prossecução dos seus próprios objectivos.
Mais tarde, a omnipresença do “utilizador” enquadrou-se perfeitamente na bem documentada era de crescimento a todo o custo da tecnologia. Era fácil avançar depressa e fazer barulho, ou comer o mundo com software, quando a ideia de “utilizador” era tão maleável. “Utilizador” é vago, criando distância e permitindo uma cultura escorregadia de marketing deficiente onde as empresas são incentivadas a crescer pelo crescimento e não pela utilidade real. A expressão “utilizador” normalizou padrões obscuros, características que encorajam subtilmente acções específicas, porque reforçou linguisticamente a ideia de métricas em detrimento de uma experiência concebida a pensar nas pessoas.
Os designers de UX procuraram criar software que fosse intuitivo para as massas anónimas, e acabámos com notificações a vermelho vivo (para criar um sentido de urgência), carrinhos de compras online com um temporizador (para incentivar uma compra rápida) e botões “Concordo” muitas vezes maiores do que a opção “Discordo” (para levar as pessoas a aceitarem os termos sem os lerem).
Um utilizador é também, obviamente, alguém que luta contra a dependência. Ser um viciado é – pelo menos em parte
– viver num estado de impotência. Hoje, os utilizadores avançados – o título originalmente atribuído a pessoas que do-
minavam competências como atalhos de teclado e web design – não são avaliados pela sua proeza técnica. São avaliados pelo tempo que passam ligados aos seus dispositivos ou pela dimensão das suas audiências.
Por defeito, “pessoas”
«Quero que mais designers de produtos considerem os modelos de linguagem também como os seus principais utilizadores», escreveu recentemente Karina Nguyen, investigadora e engenheira da Anthropic, uma empresa de IA, no X. «De que tipo de informação precisa o meu modelo de linguagem para resolver os principais problemas dos utilizadores humanos?»
No mundo antigo, os “utilizadores” funcionavam melhor para as empresas que criavam produtos, em vez de resolverem os problemas das pessoas que os utilizavam. Mais utilizadores equivaliam a mais valor. O rótulo podia despir as pessoas das suas complexidades, transformando-as em dados a serem estudados, comportamentos a serem testados e capital a ser feito. O termo ignorava frequentemente quaisquer relações mais profundas que uma pessoa pudesse ter com uma plataforma ou produto. Já em 2008, Norman se apercebeu desta lacuna e começou a defender a substituição de “utilizador” por “pessoa” ou “humano” quando se concebia para as pessoas. (Nos anos seguintes, assistiu-se a uma explosão de bots, o que tornou a questão muito mais complicada.) «Os psicólogos despersonalizam as pessoas que estudam chamando-lhes “sujeitos”. Nós despersonalizamos as pessoas que estudamos chamando-lhes “utilizadores”. Ambos os termos são depreciativos», escreveu na altura. «Se desenhamos para pessoas, porque não chamar-lhes isso?»
Em 2011, Janet Murray, professora na Georgia Tech e uma das primeiras teóricas dos media digitais, argumentou contra o termo “utilizador” por ser demasiado restrito e funcional. No seu livro “Inventing the Medium”, sugeriu o termo “interactuador” como alternativa – capta melhor o sentido de criatividade e participação que as pessoas sentem nos es-
paços digitais. No ano seguinte, Jack Dor-sey, na altura CEO da Square, publicou um apelo às armas no Tumblr, pedindo à indústria tecnológica que abandonasse a palavra “utilizador”. Em vez disso, disse, a Square iria começar a usar “clientes”, uma descrição mais «honesta e directa» da relação entre o seu produto e as pessoas para quem criava. Escreveu que, embora a intenção original da tecnologia fosse considerar as pessoas em primeiro lugar, chamar-lhes “utilizadores” fazia com que parecessem menos reais para as empresas que criavam plataformas e dispositivos. Reconsiderem os vossos utilizadores, disse ele, e «o que chamam às pessoas que adoram o que criaram».
O público ficou indiferente ao desprezo de Dorsey pela palavra “utilizador”. O termo foi debatido no site Hacker News durante alguns dias, com algumas vozes a argumentar que “utilizadores” parecia redutor apenas por ser tão comum. Outros explicaram que a questão não era a palavra em si, mas sim a atitude mais ampla da indústria, que trata os utilizadores finais como secundários à tecnologia. Obviamente, o post de Dorsey não fez com que muitas pessoas deixassem de usar “utilizador”.
Por volta de 2014, o Facebook seguiu o exemplo de Norman e abandonou a expressão centrada no utilizador, passando a usar “pessoas”. Mas é difícil deixar de usar uma linguagem interna, como prova a forma descontraída como Mosseri, do Instagram, ainda diz “utilizador”. Ao longo dos anos, outras empresas de tecnologia adoptaram os seus próprios substitutos para “utilizador”. Conheço uma empresa de fintech que chama às pessoas “membros” e uma aplicação de tempo de ecrã que optou por “gemas”. Recentemente, encontrei-me com um fundador que se retraiu quando o seu colega usou a palavra “humanos” em vez de “utilizadores”. Ele não sabia bem porquê. Eu diria que é porque “humanos” parece uma correcção excessiva.
Mas eis o que aprendemos desde os tempos do mainframe: nunca há apenas duas partes do sistema, porque nunca há apenas uma pessoa – um “utilizador” – afectada pelo design da nova tecnologia. Carissa Carter, directora académica do Instituto de Design Hasso Plattner de Stanford, conhecido como a “d.school”, compara esta estrutura à experiência de pedir um Uber. «Se encomendar um carro pelo telemóvel, as pessoas envolvidas são o passageiro, o condutor, as pessoas que trabalham na empresa que gere o software que controla essa relação e até a pessoa que criou o código que decide qual o carro a utilizar», afirma. «Todas as decisões sobre um utilizador num sistema com vários stakeholders, no qual vivemos, incluem pessoas que têm pontos de contacto directos com o que quer que estejamos a construir.»
Com o aparecimento abrupto de tudo o que é IA, o ponto de contacto entre humanos e computadores – interfaces de
utilizador – tem mudado profundamente. A IA generativa, por exemplo, tem sido popularizada com mais sucesso como um amigo de conversação. É um paradigma a que estamos habituados – a Siri pulsa como uma esfera etérea nos nossos telefones há mais de uma década, seriamente pronta a ajudar. Mas a Siri, e outros assistentes de voz já existentes, ficaram por aqui. Actualmente, há um maior sentido de parceria no ar. Aos outrora chamados bots de IA foram atribuídos títulos elevados como “copiloto”, “assistente” e “colaborador” para transmitir um sentido de parceria em vez de um sentido de automatização. Os grandes modelos linguísticos têm-se apressado a abandonar completamente palavras como “bot”.
O antropomorfismo – a tendência para atribuir qualidades humanas às máquinas – é há muito utilizado para criar uma sensação de ligação entre as pessoas e a tecnologia. Nós – as pessoas – continuávamos a ser utilizadores. Mas se a IA
é agora um parceiro de pensamento, então o que somos nós?
Bem, pelo menos por agora, não é provável que nos livremos de “utilizador”. Mas poderíamos optar intencionalmente por termos mais precisos, como “pacientes” nos cuidados de saúde ou “estudantes” na tecnologia educativa ou “leitores” quando criamos novas empresas de media. Isso ajudar-nos-ia a compreender estas relações com mais precisão. Nos jogos, por exemplo, os utilizadores são normalmente designados por “jogadores”, uma palavra que reconhece a sua participação e até o prazer da sua relação com a tecnologia. Num avião, os clientes são muitas vezes designados por “passageiros” ou “viajantes”, evocando um espírito de hospitalidade enquanto atravessam os céus. Se as empresas forem mais específicas relativamente às pessoas — e, agora, à IA — para quem constroem, em vez de abstraírem casualmente tudo na ideia de “utilizadores”, talvez a nossa relação com esta tecnologia pareça menos fabricada e seja mais fácil aceitar que vamos inevitavelmente existir em conjunto.
Durante a minha chamada telefónica com Don Norman, tropecei muito nas minhas palavras. Deslizei entre “utilizadores”, “pessoas” e “humanos” alternadamente, consciente e inseguro quanto à semântica. Norman garantiu-me que a minha cabeça estava no sítio certo — faz parte do processo de pensar na forma como concebemos as coisas. «Nós mudamos o mundo, e o mundo volta e muda-nos», referiu. «Por isso, é melhor termos cuidado com a forma como mudamos o mundo.»