Como uma peça de roupa rosa ajudou esta mulher a sobreviver 804 dias numa das piores prisões do mundo

O que deveria ter sido uma visita breve e sem complicações transformou-se num pesadelo de 804 dias de detenção numa das prisões mais temidas do mundo.

Pedro Gonçalves
Agosto 29, 2024
14:00

Em setembro de 2018, Kylie Moore-Gilbert, uma académica australiana-britânica especializada em ciências políticas do Médio Oriente, viajou para o Irão a convite de uma conferência na cidade de Qom, localizada a cerca de 150 quilómetros de Teerão. O que deveria ter sido uma visita breve e sem complicações transformou-se num pesadelo de 804 dias de detenção numa das prisões mais temidas do mundo.

Moore-Gilbert, que dominava o árabe e o hebraico, estava a estudar os Estados árabes do Golfo Pérsico, mas não falava farsi, a língua oficial do Irão. A sua estadia no país decorria sem incidentes até que, pouco antes do seu regresso, um recepcionista do hotel onde estava hospedada alertou-a de que “alguns homens muito maus” tinham vindo procurá-la. Apesar do alerta, Moore-Gilbert acreditava que conseguiria sair do país sem problemas.

No entanto, ao tentar embarcar no aeroporto de Teerão, foi abordada por homens vestidos de preto, que mais tarde se revelaram membros da Guarda Revolucionária Iraniana. Após cerca de oito horas de interrogatório, foi levada para um apartamento onde continuaram a questioná-la, enquanto a filmavam. No dia seguinte, foi oficialmente acusada de espionagem, uma acusação que sempre negou e que nunca foi provada.

A Prisão de Evin: Tortura Psicológica e Isolamento
Após uma semana sob vigilância num hotel, relata a própria à BBC, Moore-Gilbert foi transferida para a prisão de Evin, em Teerão, uma instalação notória por alojar prisioneiros políticos e intelectuais, especialmente desde a Revolução Islâmica de 1979. A prisão, que tem uma ala conhecida como “Universidade Evin” devido ao elevado número de académicos que lá estão detidos, foi incluída na lista negra do governo americano em 2018 por “graves abusos dos direitos humanos”.

Moore-Gilbert foi imediatamente colocada em confinamento solitário, onde permaneceu grande parte dos 804 dias que passou detida. O isolamento prolongado, que durou até sete meses consecutivos, foi descrito pela académica como uma forma de “tortura psicológica” concebida para destruir a sanidade do prisioneiro antes dos interrogatórios. “O isolamento devora-te por dentro”, relembra ao canal britânico. “É, em certo sentido, pior do que a tortura física.”

Durante este período, Kylie Moore-Gilbert foi submetida a uma série de privações sensoriais e físicas, como ser vendada sempre que era retirada da cela para interrogatórios que podiam durar horas. “Nunca sabíamos quando seriamos interrogados, quanto tempo duraria, ou o que nos poderia acontecer. Essa incerteza constante alimentava a agitação mental.”

A Força da Mente: Sobreviver ao Confinamento
Para sobreviver às duras condições de isolamento, Moore-Gilbert desenvolveu técnicas de sobrevivência mental. “Precisei de aprender a viver segundo a segundo, concentrando-me no presente, afastando todos os pensamentos de lamentação ou ansiedade pelo futuro.” A académica dedicava o tempo a exercícios, jogos e truques mentais, como contar ou memorizar padrões nos azulejos da cela, para se manter mentalmente ativa e sã.

O momento mais desesperador veio no primeiro mês de confinamento, quando a solidão extrema quase a derrotou. Contudo, a descoberta de um canal ilícito de comunicação com outras prisioneiras em celas próximas trouxe-lhe um inesperado consolo. Duas detentas ouviram-na falar com os guardas e, arriscando-se, decidiram oferecer-lhe apoio. Conseguiram passar-lhe um pequeno saco com nozes e frutas secas, juntamente com uma bola feita de papel higiênico que trazia uma mensagem: “Querida Kylie, somos tuas amigas. Não estás sozinha.”

Este pequeno gesto de solidariedade teve um impacto profundo. “Elas arriscaram tudo para me ajudar, e isso deu-me uma enorme força”, recorda. As prisioneiras continuaram a trocar mensagens com Moore-Gilbert, utilizando métodos engenhosos, como as “calças viajantes” – calças cor-de-rosa do uniforme prisional nas quais escondiam mensagens costuradas dentro da bainha.

Vozes Amigas Que Chegavam Através de Calças Rosa
Além das mensagens escritas, Moore-Gilbert e as outras prisioneiras encontraram uma forma de comunicar verbalmente através das grades de ventilação. Estes curtos momentos de conversa, muitas vezes realizados em condições arriscadas, foram fundamentais para a sua sobrevivência emocional. “Ouvir vozes amigas em inglês era maravilhoso. Elas diziam-me para não fazer confissões falsas, assegurando-me que, no final, eu seria trocada por algo que o Irão queria.”

Aquelas mulheres estavam certas. Moore-Gilbert recusou-se a aceitar as acusações de espionagem ou a colaborar com os seus captores, apesar de ser repetidamente ameaçada e submetida a longas sessões de interrogatório. Eventualmente, foi julgada e condenada a 10 anos de prisão pelo famoso “juiz da forca”, Abolqasem Salavati.

A esperança renasceu quando Moore-Gilbert percebeu que o Irão a estava a manter como refém para ser usada como moeda de troca. Contudo, a sua situação permaneceu desconhecida do público durante quase um ano, devido à insistência do governo australiano em manter a “diplomacia silenciosa”. Foi apenas quando algumas prisioneiras libertadas deixaram vazar a informação de que havia uma australiana em Evin que o mundo tomou conhecimento do seu calvário.

A pressão pública, alimentada por cartas que Moore-Gilbert conseguiu enviar secretamente para a imprensa britânica, culminou numa campanha internacional pela sua libertação. Em novembro de 2020, após mais de dois anos de cativeiro, Kylie Moore-Gilbert foi finalmente libertada numa complexa troca de prisioneiros que envolveu quatro países. Três iranianos, condenados por uma tentativa de atentado à embaixada de Israel em Bangkok, foram trocados pela académica.

Devido à pandemia de COVID-19, ao chegar à Austrália, Moore-Gilbert foi colocada em quarentena num hotel, o que, curiosamente, se revelou uma bênção. “Ter ficado isolada permitiu-me uma transição gradual de volta à realidade, interagindo pouco a pouco com as pessoas. Foi, na verdade, uma experiência positiva”, conclui à BBC.

Partilhar

Edição Impressa

Assinar

Newsletter

Subscreva e receba todas as novidades.

A sua informação está protegida. Leia a nossa política de privacidade.