‘A Maldição de Cam’: Como uma passagem da Bíblia tem sido usada para justificar a escravatura

Um relatório divulgado em março de 2024 por uma comissão independente de supervisão sugeriu que a Igreja de Inglaterra deveria pagar mil milhões de libras em reparações – 10 vezes mais do que o montante previamente estipulado – aos descendentes da escravidão.

Pedro Gonçalves
Maio 11, 2024
17:00

Um relatório divulgado em março de 2024 por uma comissão independente de supervisão sugeriu que a Igreja de Inglaterra deveria pagar mil milhões de libras em reparações – 10 vezes mais do que o montante previamente estipulado – aos descendentes da escravidão.

O relatório, que foi considerado o início de uma resposta “multigeracional ao mal hediondo da escravidão de cativeiro transatlântica”, segundo Justin Welby, o Arcebispo de Cantuária e líder espiritual da Comunhão Anglicana global de cerca de 85 milhões de cristãos, expõe como a ‘maldição de Cam’, encontrada no livro de Gênesis, tem sido grotescamente utilizada ao longo dos séculos para justificar a escravidão.

“Esta maldição bíblica tem sido uma ferramenta para perpetuar um sistema de opressão e injustiça contra os povos africanos”, afirmou o Arcebispo Welby, ao The Conversation, referindo-se à interpretação errônea da passagem de Gênesis que condenava os descendentes de Cam à servidão perpétua. Essa interpretação distorcida das escrituras também permeou os debates durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), quando líderes religiosos no sul dos Estados Unidos defendiam uma leitura literal da maldição de Cam para justificar a escravidão dos africanos.

O relatório cita o livro de Gênesis, capítulo 9, versículos 24 e 25, conforme segue: “Noé acordou do seu vinho e soube o que seu filho mais novo [Cam] lhe tinha a ele. Então ele disse: ‘Maldito seja Canaã. Escravo dos escravos será para seus irmãos’.” A história da Bíblia relata como Cam, filho de Noé, viu o pai bêbedo e despido. AO acordar, Noé sentiu-se humilhado e amaldiçoou o filho de Cam, Canaã.

A maldição de Cam foi posteriormente invocada nas colónias americanas como uma justificação ideológica para a escravidão.

No século XVII, colonos puritanos estabeleceram comunidades no Novo Mundo, onde compraram escravos africanos, todos considerados descendentes de Canaã.

Este relatório da Igreja de Inglaterra representa um passo significativo para reconhecer e confrontar o papel que a religião desempenhou na perpetuação da escravidão. Ao expor como a maldição de Cam foi distorcida para justificar uma prática tão abominável, destaca a necessidade de uma reflexão profunda sobre o uso das escrituras sagradas para legitimar a opressão e a injustiça ao longo da história.

É importante ressaltar que a maldição de Cam também foi usada para justificar a escravidão em outras partes do mundo, incluindo as colônias portuguesas e espanholas na América Latina. A interpretação distorcida das escrituras foi uma das muitas formas pelas quais as religiões foram manipuladas para sustentar um sistema de exploração e opressão.

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