Eis o que aconteceu quando deixei a IA planear a minha vida durante uma semana

por: Elissaveta M. Brandon, Fast Company

Que sorte temos nós de viver numa era com tanta escolha que podemos simplesmente subcontratá-la à tecnologia? Precisa de conselhos de beleza? Deixe a IA ajudar. Precisa de um sofá novo? Deixe a IA ajudar. Precisa de música? Precisa de um perfume? Precisa de um vestido? A IA também pode ajudar nessas tarefas.
O mercado digital está tão saturado que é possível consultar os deuses da IA para cada decisão tomada na internet. Portanto, foi exactamente isso que decidi fazer. Ao longo de uma semana, deixei que a Inteligência Artificial me indicasse a roupa que devia comprar, a maquilhagem que devia usar, e o tipo de mesa de centro que devia colocar na minha sala de estar. Ouvi música recomendada por um tipo de IA e depois por outro tipo de IA. Até fiz o teste de personalidade de uma IA para me ajudar a escolher o melhor tom de batom.
Participei nesta experiência não com a intenção de comprar, mas para ver o que a IA gostaria que eu comprasse. Para ter uma ideia de como seria a minha vida se eu deixasse a IA tomar as rédeas. Abordei esta pesquisa com uma grande dose de curiosidade e uma dose ainda maior de cepticismo. Descarreguei meia dúzia de aplicações e visitei quase o mesmo número de websites.
Tirei screenshots de cada vez que a IA se enganava a ponto de me fazer rir (muitas vezes) e tirei screenshots de cada vez que a IA oferecia algo que me via a usar (menos frequente). Uma semana depois, o meu telemóvel está cheio de capturas de ecrã de peças de vestuário, padrões, champôs secos e perfumes, todos escolhidos “especialmente para mim” – e estou pronta para partilhar algumas conclusões pessoais.
Mas primeiro, um índice. Para a mobília, utilizei o Casawire. Para a música, o YouTube Music. Para perfumes, o EveryHuman e o Sommelier du Parfum; e para velas perfumadas, o Scent Lab. Para roupas: Shoptrue. E para cosméticos, o Glosswire e uma empresa de software mais orientada para o negócio chamada PerfectCorp. O que se segue não é uma análise destas aplicações, por isso não confunda a sua inclusão com uma aprovação.

conclusão n.º 1
A IA é a ilusão de exclusividade
Um dos maiores argumentos de venda que as marcas gostam de alardear é a capacidade da IA para aprender o seu gosto tão bem que pode afinar o que lhe vendem ao longo do tempo. Quanto mais tempo passar connosco, prometem estas plataformas, mais o conhecemos.
Durante a experiência de uma semana, deixei de contar o número de vezes que uma marca me disse que algo fora seleccionado “especialmente para mim”. Para o meu perfume pessoal, a marca de fragrâncias No Ordinary Scent, sediada em Estocolmo, transformou um trio de imagens que carreguei na plataforma numa Eau de Parfum que foi “co-criada” por mim. Para a minha vela pessoal, o Scent Lab fez-me responder a um questionário de 60 segundos e gerou três misturas que correspondiam às minhas preferências por ordem de precisão, de 84% a 98%. E se eu tivesse “dificuldade em comprometer-me” – foi como a marca o referiu – podia comprar versões miniatura das três.
Não sei se gostaria de algum destes aromas porque não encomendei nenhum. Pode ser que uma destas fragrâncias me faça regressar a Casablanca, onde cresci, e que o cheiro me pareça… só meu. Mas quando carreguei três imagens de lugares em Casablanca que me fazem sorrir (a Mesquita Hassan II, a avenida ladeada de palmeiras onde vivíamos, e um prato de doces Cornes de Gazelles), o site gerou etiquetas absurdas como “curioso” e “arrojado”. Depois criou um perfume com notas de pimenta rosa, âmbar e musgo – e nem uma única nota de sal marinho para o oceano das fotos, ou açafrão, ou qualquer coisa marroquina (excepto o cardamomo).
Independentemente do resultado, a viagem pareceu transaccional e superficial. Segundo Meredith Broussard, professora associada da Universidade de Nova Iorque, cuja pesquisa se centra em preconceitos algorítmicos e que publicou o livro “More than a Glitch”, a minha desilusão deve-se a um desalinhamento entre as minhas expectativas exageradas relativamente à IA e o seu potencial real no comércio. «É completamente normal esperar que a IA pareça especial, mas quando a utilizamos, apercebemo-nos de que é apenas uma tecnologia mundana», observa.
Colocando os pés na terra: a Inteligência Artificial não é magia, é matemática. «Matemática muito complicada e bonita», esclarece Meredith Broussard. E embora seja tentador imaginar que uma máquina pode resolver o problema de ser humano, Meredith Broussard lembrou-me que a IA não é mais do que processos estatísticos. Pega em grandes quantidades de dados, alimenta-os num computador, faz com que esse computador modele vários padrões matemáticos a partir deles, e utiliza esses padrões para prever o tom de batom que alguém vai querer.
Por falar em batons: decidi procurar um na internet e uma breve pesquisa no Google levou-me ao website da Perfect Corp, o site com o teste de personalidade da IA. Depois de uma selfie rápida, o site sugeriu que, com base nos meus atributos faciais, gosto de interagir com as pessoas e tenho muita energia. Naturalmente, isto significa que eu devia comprar um batom vermelho arrojado chamado “Arrebatador” para “reflectir a minha personalidade forte e vibrante”. (Devo referir que gosto de pessoas apenas com moderação, e não tenho, de todo, muita energia.) Gostei do batom proposto, mas fiquei tão desiludida com o processo manifestamente manipulador que não o consegui comprar.

conclusão n.º 2
A IA não o ajuda a tomar decisões
A paralisia da decisão é um problema distinto do século XXI, e encontrou uma solução do século XXI na Inteligência Artificial. Ou será que encontrou? De acordo com um estudo recente da Oracle, que inquiriu mais de 14 mil líderes empresariais, a IA levou a um nível preocupante de sobrecarga de dados. Setenta e quatro por cento dos inquiridos afirmaram que o número de decisões que têm de tomar diariamente aumentou mais de 10 vezes nos últimos três anos, e 72% acreditam que a maioria dos dados disponíveis só é útil para os profissionais de TI ou cientistas de dados que podem interpretar e aproveitar os conhecimentos. Não sou cientista de dados, mas a situação pareceu-me muito familiar.
Prevê-se que o mercado de batons atinja 11,6 mil milhões de euros até 2026. São milhões de batons que actualmente se encontram em armazéns, navios de carga e em prateleiras de vidro elegantes. O mesmo aplica-se a quase todas as categorias de coisas que se podem comprar (pelo menos nos EUA). Entre na Netflix e terá mais de 17 mil títulos. Se tentar comprar um sofá online, a sua cabeça vai explodir. Se a IA me pode ajudar a reduzir as minhas opções, porque não hei-de deixá-la fazê-lo?
Como alguém que odeia fazer compras, fiquei entusiasmada com a missão do Shoptrue: ser o Netflix da moda. O site, lançado em Novembro de 2022, usa Inteligência Artificial para seleccionar uma lista de compras personalizada com base no seu gosto, orçamento e adequação, para não precisar mais de passar horas a procurar aquele casaco perfeito.
Contudo, a minha experiência de compras foi como ir ao centro comercial, com uma camada adicional de aversão a mim própria sempre que a IA recomendava uma peça de vestuário justa. Aquela camisola colorida que a Shoptrue propôs ficava linda na modelo de tamanho S, mas de certeza que não ficava linda em mim, em grande parte porque o site não se deu ao trabalho de perguntar o meu tamanho ou a forma do meu corpo antes de começar a escolher tops
Em vez disso, perguntou como me visto num mês típico, as marcas que costumo usar, as palavras que usaria para caracterizar o meu estilo, e as cores e padrões que gosto de usar. Quando a empresa foi lançada, os fundadores disseram à Fast Company que o algoritmo acabaria por aprender as suas preferências de ajuste e tamanho ao longo do tempo e, em seguida, recomendaria artigos com maior probabilidade de serem lisonjeiros. É possível que isto aconteça, mas quem é que tem tempo para esperar?

conclusão n.º 3
A IA nunca conhecerá o seu verdadeiro eu
Há qualquer coisa quando uma marca vende a ideia de que algo foi criado “só para si”, que ilumina o nosso ego como uma árvore de Natal. A pesquisa mostrou que os humanos gostam de ser vistos como indivíduos e não como parte de um rebanho. Gostamos de guardanapos com monogramas e pulseiras Pandora personalizadas. Queremos sentir-nos especiais. Por isso, quando uma marca nos oferece um isco, mordemos. Porém, na minha experiência, o isco nunca é tão bom como se espera.
Este problema específico é maior do que a IA. Meredith Broussard refere que a internet nos vendeu a mentira de que a publicidade direccionada poderia dar-nos exactamente aquilo que desejamos. «A ideia de que, de alguma forma, as compras podem ser personalizadas para nos dar o que queremos também não é inteiramente verdade», afirma. «Não nos vai fazer felizes, apenas nos vai mostrar coisas que provavelmente compraremos com base no que pessoas como nós compraram antes, e isso não é o mesmo que alegria, são apenas transacções comerciais.»
Uma das primeiras plataformas que experimentei no âmbito da minha experiência foi o Casawire, lançada em Setembro de 2022. O serviço apresenta-se como o Tinder, mas para mobiliário, uma premissa que achei suficientemente absurda para testar. As regras são geralmente familiares: deslizar para a esquerda se gostar do que está no ecrã, deslizar para a direita se não gostar. A direcção do dedo é oposta à do Tinder, o que achei extremamente confuso, apesar de ter passado apenas uma semana no Tinder antes de conhecer o meu actual marido (suponho que esse algoritmo funcionou para mim).
No primeiro dia em que usei o Casawire, detestei quase todas as peças de mobiliário que vi. Não importa, pensei, o algoritmo ainda não me conhece. No segundo dia, detestei quase todos os móveis que vi. Na terceira vez… já sabem onde isto vai parar. (A aplicação só tinha 75 marcas quando a testei; por isso, é possível que não houvesse variedade.) De qualquer forma, a plataforma sugeria continuamente peças de uma marca que eu deslizava para a direita (ou seja, não gostava), o que parecia quebrar a promessa mais básica da IA.

conclusão n.º 4
A IA acabou com a arte da descoberta
Ao longo da minha experiência de uma semana, percebi que, por mais que a IA goste de fingir que nos conhece, ela não o faz. Mas houve uma excepção, que foi o mundo do streaming de música.
Para a minha experiência, suspendi a minha subscrição do Spotify para testar o YouTube Music, sobretudo para poder começar do zero. Antes mesmo de ouvir uma única música na plataforma, senti-me vista (provavelmente porque o YouTube é propriedade da Google, e a Google já sabe tudo o que há para saber sobre mim). Ali estava tudo à minha espera: o pop francês da minha adolescência e o folk americano dos meus últimos anos em Nova Iorque. A música clássica, as bandas sonoras que nunca ouvira antes, mas ao som das quais adoro escrever. Até os artistas marroquinos que ouvia quando era jovem estavam na minha fila de espera, com novos lançamentos que me traziam muita alegria.
E depois o feitiço quebrou-se. Após ter escolhido algo clássico, deixei o shuffle tocar durante toda a noite. Num dia ou dois, toda a minha página inicial era só música clássica e todas as outras partes de mim desapareceram do ecrã. A IA conhecia-me demasiado bem para o meu próprio bem; eu estava presa num ciclo de feedback.
Quando olho para o “quadro da disposição” da minha vida – batom vermelho vivo, vela com aroma a tabaco, música clássica constante – vejo partes de mim nos itens que a IA apresentou, mas não consigo livrar-me da ilusão de tudo isso. Quantas outras pessoas foram presenteadas com versões semelhantes do meu batom e da minha vela com aroma a tabaco?
Foi uma experiência falhada, mas apesar dos meus resultados pouco animadores, há uma certa alegria e valor na experiência de trabalhar com a tecnologia para co-criar as coisas da nossa vida. É a mesma alegria que sentimos quando a tecnologia nos ajuda a descobrir algo novo de que gostamos verdadeiramente, seja um perfume ou uma pessoa que nos fez sorrir numa aplicação de encontros.
Descobri que fazer compras com a IA é um pouco como ler um horóscopo: acreditar nas coisas de que gostamos, ignorar as que não gostamos. Talvez seja, afinal de contas, um ser humano normal: quero sentir-me especial, e a IA só me fez sentir como um ponto de dados. 

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