Reciclagem: ONU, Europa e coligação de 55 países reforçam aposta. E Portugal, que papel tem nesta meta mundial? “Não iremos cumprir”, aponta especialista

Os sacos de plásticos ultraleves – os transparentes -, utilizados para fruta, legumes e pão, vão passar a ser pagos em supermercados, frutarias e outros estabelecimentos. “No futuro, deverá ser privilegiada a utilização de sacos próprios não descartáveis ou alternativas reutilizáveis. A utilização de sacos muito leves ficará sujeita ao pagamento de uma contribuição à semelhança dos sacos de plástico leves”, indicou o Ministério do Ambiente e da Ação Climática.

O pagamento pelos sacos de plástico leves começou em 2015, por 10 cêntimos, o que permitiu ao Estado arrecadar uma receita de 2,1 milhões de euros. Se por um lado procura-se evitar o uso de plástico desnecessariamente, por outro há uma palavra cada vez mais comum no léxico nacional: a reciclagem.

Esta quarta-feira, a ONU garantiu que a poluição plástica pode ser reduzida em 80% até 2040, se se seguir um plano assente na reciclagem, reutilização e redirecionamento.

Alguns grupos ambientalistas já criticaram o relatório, que acusam estar centrado na na gestão de resíduos, o que consideraram uma concessão à indústria global de plásticos e petroquímica. “As verdadeiras soluções para a crise dos plásticos vão exigir controlos globais dos produtos químicos nos plásticos e reduções significativas na produção de plásticos”, sustentou Therese Karlsson, consultora científica da Rede Internacional para a Eliminação de Poluentes.

Em Paris, arrancaram as negociações para um tratado global sobre plásticos – 55 países estão sentados à mesa a discutir se se pode limitar a produção de mais plásticas, se a indústria petroquímica que defende a reciclagem como a solução para os resíduos de plástico tem razão.

O presidente francês Emmanuel Macron garantiu que “não há tempo a perder”. “O objetivo deve ser produzir um texto com o qual todos concordem até ao final de 2024, um ano antes da Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, em Nice”, destacou.

Em março último, a União Europeia aprovou a Lei das Matérias-Primas Críticas, para diminuir a exagerada dependência europeia de fornecedores externos, muito dos quais rivais, como a China. E quais são os elementos centrais da proposta de lei?

– extrair a nível interno 10% das matérias-primas críticas, por ano;
– processar 40% dessa procura e reciclar 15%, até 2030;
– produzir pelo menos 40% da tecnologia limpa necessária até 2030;
– assegurar que não mais de 65% do consumo de qualquer matéria-prima estratégica seja proveniente de um único país terceiro.

Uma vez mais, a palavra reciclagem, que conquistou um papel especial no dia a dia dos portugueses. Mas Portugal mostra-se um país consciente do desafio? Tem a palavra Pedro Nazareth, CEO da Eletrão – Associação de Gestão de Resíduos, em declarações exclusivas à ‘Executive Digest’.

1 – Em julho de 2022, referiu em entrevista esperar uma “revolução no sector dos resíduos urbanos”. Volvido quase um ano, está em marcha essa revolução? Há sinais que possa estar próxima? Ou pelo contrário, não há qualquer indicação nesse sentido?

Para além do PERSU e PNGR 2030, que são linhas de orientação mais estratégicas, aguardamos com muita expectativa os desenvolvimentos que têm vindo a ser anunciados, mas sucessivamente adiados, relativos à alteração do diploma quadro do sector, o UNILEX e dos processos de atribuição de novas licenças às entidades gestoras de responsabilidade alargada do produtor.

2 – Como avaliaria atualmente a reciclagem em Portugal?

Infelizmente, não iremos cumprir enquanto país com um conjunto de metas de reciclagem em diferentes fluxos da gestão de resíduos durante vários anos. Temos defendido que exista bom senso e a humildade política de se desenhar um caminho ambicioso de mudança, de mais reciclagem, mas um caminho progressivo e realizável.

Teremos de operar uma grande alteração e continuar a separar as diferentes famílias de produtos e materiais que estão misturados no balde do nosso lixo comum e de garantir o adequado tratamento e reciclagem destas famílias e de outras que são ilegalmente processadas sem salvaguarda ambiental.

3 – Três em cada quatro produtos eletrónicos são ‘desviados’ para o mercado paralelo em Portugal. O que é este mercado, quem o promove, em que modo beneficia deste desvio, onde opera essencialmente? As autoridades estão conscientes da situação?

Os equipamentos elétricos usados são um repositório de muitos materiais valiosos. O valor que lhes está associado leva a que muitos sejam desviados do circuito formal da reciclagem. Muitos aparelhos, deixados na via pública pelo consumidor para posterior recolha pelos serviços municipais, são levados por agentes informais, os designados sucateiros.

Muitos equipamentos são tratados de forma ilegal, sem que seja feita a remoção obrigatória e eliminação controlada destes componentes perigosos. Falamos de aparelhos que contêm componentes perigosos, altamente poluentes e prejudiciais à saúde humana e ao ambiente que precisam de ser tratados em unidades específicas.

Quando os equipamentos de refrigeração, como frigoríficos, por exemplo, não são adequadamente descontaminados provocam graves danos ambientais já que são libertados gases de refrigeração para a atmosfera, o que contribui para a degradação da camada de ozono.

Para agravar a situação os aparelhos desviados para o mercado paralelo não são contabilizados para efeito das metas nacionais. Este problema exige uma ação fiscalizadora mais forte, mas também outra atitude mais preventiva por parte dos municípios.

O Electrão defende um conjunto de medidas para o fluxo de equipamentos elétricos usados que resumiu na “Agenda para as Metas Nacionais de Recolha e Reciclagem de Elétricos”, apresentada publicamente e à tutela em 2019. Mais recentemente, neste ano, na nossa participação na Comissão de Ambiente da Assembleia da República, reforçámos a importância de implementação de algumas destas e de outras medidas.

De forma resumida, são um conjunto de medidas de organização, responsabilização de agentes, fiscalização e estabilidade financeira do sistema de reciclagem de elétricos, em que a questão do combate ao mercado paralelo assume um elemento central.

Como mais de 80% dos equipamentos elétricos usados gerados são aparelhos volumosos com dimensões relevantes, estes não podem ser encaminhados no balde do lixo das nossas casas ou das empresas. Portugal começará a ter outros resultados de reciclagem de elétricos usados no dia em que quiser encontrar uma solução para o mercado paralelo que processa e transforma estes aparelhos com grave prejuízo ambiental e da soberania do espaço europeu em termos de circularidade de materiais críticos.

4 – Se do lado das autoridades há intenção de dinamizar o setor da reciclagem, há também do lado dos principais fabricantes intenções de contribuir para a solução? Ou sente que, tal como no sector da moda, avançamos para um ‘fast eletronic’, instrumentos mais facilmente descartáveis?

A obsolescência programada é um assunto que preocupa as entidades, não só nacionais como europeias.

O Presidente da República promulgou em fevereiro deste ano o diploma que completa a transposição da diretiva comunitária sobre defesa dos consumidores. Com a nova lei fica vedado ao profissional a adoção de quaisquer técnicas através das quais o mesmo visa reduzir deliberadamente a duração de vida útil de um bem de consumo a fim de estimular ou aumentar a substituição de bens.

O Electrão, como entidade gestora de equipamentos elétricos usados, tem enfatizado, nas suas campanhas de comunicação e sensibilização, a necessidade de encaminhar para reciclagem estes produtos, mas convida também a repensar hábitos de consumo, a alterar comportamentos, a recusar o que é excessivo e a reutilizar sempre que possível. Aqui, já entramos no campo da responsabilidade individual, que nos deve levar a ponderar o uso de recursos com mais parcimónia.

5 – Plásticos, dispositivos eletrónicos, papel e embalagens. A reciclagem entrou na vida das pessoas há uns anos, mas parece ainda faltar algo para se tornar parte do dia a dia das pessoas. Sente que é assim? E se sim, que passo falta ser dado para tornar a reciclagem mais importante nos nossos hábitos diários?

O país já fez, no passado, importantes investimentos em reciclagem e os resultados não foram os esperados. A tecnologia ainda não consegue resolver tudo. Já o percebemos há duas décadas quando começámos a separar as embalagens para reciclagem. Hoje enviamos para reciclar pouco mais de metade. O restante é queimado ou depositado em aterro. As empresas e os cidadãos têm que ser intervenientes ativos na hora de separar e enviar para reciclagem.

A eletrificação de muitos dos produtos veio tornar o desafio da reciclagem ainda mais complexo. Misturamos muitos destes aparelhos, alguns com componentes muito perigosos, no lixo doméstico e industrial. Recolhemos uma parte, mas temos que conseguir convencer o cidadão a fazer mais.

O mesmo verifica-se nas pilhas e baterias. A situação é mais grave porque a dimensão destes produtos convida à sua deposição no balde dos resíduos indiferenciados.

Este panorama, que não orgulha nenhum agente do setor, vem refletido nas taxas de reciclagem, comunicadas com transparência a Bruxelas.

Individualmente há conhecimento, iniciativa e visão, mas o sistema de reciclagem não está a conseguir entregar os resultados pretendidos e a cumprir as metas ambientais. Todas as novas ideias são bem-vindas, temos que ser capazes de fazer mais em conjunto enquanto sistema de reciclagem, enquanto país.

6 – A União Europeia tem dado vários passos para combater o desperdício. E, em particular, em Portugal, pode-se fazer mais?

O combate ao desperdício, a prevenção da geração de resíduos, a doação, a reutilização, a servitização de produtos e economia partilhada e a extensão do tempo médio de vida dos produtos que consumimos são áreas que receberam recentemente um novo impulso com divulgação de um conceito simultaneamente novo e antigo de economia circular.

Creio que não há hoje uma multinacional com produtos de consumo que não tenha pelo menos algumas iniciativas que procurem acompanhar o ‘zeitgeist’. Existem sempre novas dinâmicas que podem e devem ser incutidas pelas políticas públicas de desenvolvimento de produto e de gestão de resíduos, sobretudo quando se entende que a intensidade destas alterações ainda não é a desejada. A título de exemplo, em França, recentemente, introduziu-se uma medida muito importante de apoio à reutilização que foi o cheque reparação oferecido aos cidadãos que pretendam recuperar algumas tipologias especificas de produtos eléctricos e electrónicos.

7 – A reciclagem, como um todo a nível europeu, pode beneficiar com esta norma da UE. Em que sentido? Mais investimentos no sector? Mais informações aos cidadãos? Mais combate à fraude? Mais regulamentos?

Este desafio vem reforçar a importância das políticas de gestão de resíduos e do sector da reciclagem relacionando-os com o epicentro da agenda política. Os sistemas de reciclagem de resíduos deixam de responder apenas às problemáticas da deposição insustentável de resíduos, do tratamento de alguns materiais poluentes e do fecho genérico do ciclo dos materiais. Estes sistemas passam também a ter um papel muito específico na separação de um conjunto de materiais críticos, alguns dos quais ainda sem processos devidamente estabelecidos nas diferentes operações de reciclagem, como é o caso das terras raras.

O modelo económico e de operação de alguns destes sistemas, entre os quais o de reciclagem de equipamentos eléctricos usados, terá que ser ajustado a esta nova realidade, implicando uma revisão dos standards setoriais que impendem sobre as operações de recolha e reciclagem. Será uma nova oportunidade para Bruxelas nivelar os operadores de reciclagem, obrigando-os a respeitar um conjunto de condições técnicas e procedimentos mínimos para participar nesta atividade.

Em Portugal, por outro lado, esta realidade obriga a enfrentar os problemas do setor, que estão bem identificados e que continuam a impedir a obtenção de bons resultados de reciclagem, em particular, os relacionados com o mercado paralelo, com o défice de fiscalização e da falta de responsabilização dos diferentes intervenientes na cadeia de valor.

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