Opinião José Costa Pinto. Govliance, como disse?

por José Costa Pinto, sócio fundador da Costa Pinto Advogados

Leu a palavra “Govliance” e não a conhece? É natural. A palavra não existe, mas o que ela significa é real e lidamos com o tema todos os dias nas nossas empresas.

Como é sobejamente conhecido, os códigos de governo das sociedades proliferaram no mundo ao longo das últimas décadas promovendo recomendações boas práticas em matéria de administração e fiscalização de sociedades (especialmente as cotadas). Esta evolução foi sendo pautada por um debate permanente entre o mercado e os seus agentes, mas também nas escolas de gestão, economia e (mais recentemente) direito, com uma crescente atenção pública e política sobre o fenómeno. Neste âmbito, encontramos dezenas de códigos e outros instrumentos propondo recomendações referentes a temas tão relevantes como a regulação de situações de conflitos de interesse ou de transações com partes relacionadas; a relação entre administradores executivos e os administradores não-executivos; a avaliação de desempenho e a fixação de remunerações; ou o tratamento e divulgação de informação societária.

Aqueles que estão menos vezes em contacto com matérias de governo das sociedades acabam por ficar surpreendidos quando percebem que as regras de bom governance têm por natureza um cariz recomendatório. Isto é, que são regras cujo incumprimento, pela sua própria natureza, não gera qualquer sanção jurídica para o “incumpridor”, apenas o faz alvo de potenciais críticas ou outras formas de desvalor por parte de mercado e dos seus agentes.

A lógica que tem imperado no sistema é tributária do princípio do “one size does not fit all” e concretiza-se numa abordagem de “cumprimento ou explicação”, que permite a cada sociedade adotar ou não adotar uma determinada recomendação, obrigando-a, porém, a justificar a sua opção. Perante esta justificação, caberá ao mercado e aos agentes valorizar essa resposta e censurá-la ou aprender com ela.

Por um lado, parece (e é) justo reconhecer a quem é dono de uma empresa e que corre por sua conta o risco dessa jornada empresarial a liberdade para definir, entre outros aspetos, a forma de organização da mesma ou quem se deve sentar nos órgãos de administração e fiscalização. Por outro lado, parece (e é) indiscutível que o quadro legal que define a responsabilidade individual de quem – seja como acionista ou membro de um órgão social – transgride é hoje claro e denso quanto às consequências individuais de eventuais ilegalidades no exercício dessas funções.

Contudo, não podemos ignorar que a corporate governance tem assumido vestes cada vez mais impositivas em função de muitas vezes se imputarem (e bem, diga-se) as causas de determinadas crises e escândalos empresariais à falta de boas práticas de governo das sociedades. Nesta perspetiva, as causas (má governance) e as consequências (crise ou escândalo) têm dado azo a uma perceção pública que a natureza recomendatória das normas de governo das sociedades tributa a sua existência a uma alegada subserviência dos poderes públicos e legislativos aos poderes económicos.

Esta perceção, muito mais empírica do que científica, tem gerado um intenso apetite legislativo por matérias de governo das sociedades, particularmente nos setores mais regulados como o bancário e o segurador. O fenómeno não é novo, nem recente, mas tem sido constante e tem promovido uma erosão do espaço recomendatório em detrimento do espaço impositivo das regras de “bom governo”.

Se atentarmos ao setor financeiro, por exemplo, entre as normas legais do histórico “Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras” e as normas do recente Aviso do Banco de Portugal n.º 3/2020, que regula cultura organizacional, governo interno, sistema de controlo interno e políticas e práticas remuneratórias das instituições relevantes, começa a ser difícil encontrar espaço para a aplicação de regras de bom governo de cariz meramente recomendatório. Naturalmente que se reconhece que as grandes opções continuam em aberto, designadamente na escolha do modelo de governo das instituições, mas o espaço de escolha está cada vez mais reduzido e a pressão sobre as opções de governance cada vez mais densa.

Mas será que esta transformação do contexto recomendatório em regulatório em matérias de governo societário significará o fim dos problemas ou uma panaceia milagrosa que fará das instituições entidades bem geridas e sustentáveis? Não creio.

Não é criando regras e regrinhas ou transferindo para terceiros competências e juízos que cabem em primeira linha aos acionistas, aos membros dos órgãos sociais e aos stakeholders que se alcançam estes objetivos. A cultura, a responsabilidade individual e a ética de uma instituição melhoram-se promovendo o alinhamento dos interesses sociais que considere acionistas, membros dos órgãos sociais, trabalhadores, fornecedores, clientes e demais interessados em igual medida, promovendo a responsabilidade ambiental, social e de governance (o bem atual “ESG”, a que voltaremos em texto futuro) e promovendo o conhecimento, a apropriação cultural e a interiorização dos ensinamentos que o estudo e desenvolvimento do corporate governance ao longo dos últimos anos nos trouxeram.

É certo que não foi tão abrupta como a transformação de Gregório Samsa num gigante inseto na obra de Kafka, mas esta metamorfose do governance em compliance deve-nos fazer igualmente refletir. Em particular, deve-nos fazer refletir como poderemos promover a responsabilidade dos intervenientes num contexto que cada vez mais busca a (mera) conformidade (compliance) e menos a substância, pois só num ambiente empresarial de liberdade informada e ponderada se promove a responsabilidade dos intervenientes, porque sem liberdade não há responsabilidade.

Por fim, acabamos como começámos: “Qual é o significado da palavra “Govliance”?Govliance significa o resultado da conversão do governance em compliance que temos vindo a assistir ao longo dos últimos anos e cuja eficácia, para já, se encontra por provar. Não discutindo os fins, cabe-nos a nós garantir que o debate sobre estes temas não é capturado por meras perceções sociais e políticas e que as empresas não fiquem aprisionadas numa sucessão de rituais e formalidades, antes mantendo-se como entidades vivas e dinâmicas na prossecução das suas finalidades e interesses.