A recente conversa telefónica entre Donald Trump e Vladimir Putin, com uma duração de 90 minutos, marcou um ponto de viragem na política externa dos Estados Unidos e na relação transatlântica. O presidente norte-americano, conhecido pelo seu cepticismo em relação ao atlantismo tradicional, deu um passo significativo no que parece ser um afastamento da estratégia de contenção da Rússia, adotada desde a Segunda Guerra Mundial. O anúncio da chamada e das suas implicações suscitou críticas ferozes entre aliados europeus e especialistas em segurança, que veem a movimentação como uma concessão a Moscovo à custa da Ucrânia.
“Acabo de ter uma longa e altamente produtiva conversa com o presidente Vladimir Putin da Rússia”, declarou Trump na sua rede social, Truth Social. Durante a chamada, que o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, confirmou ter durado uma hora e meia, os líderes discutiram vários temas, incluindo o Médio Oriente, a inteligência artificial, a energia e o poder do dólar. No entanto, o principal foco foi a guerra na Ucrânia.
Trump afirmou que Putin chegou mesmo a utilizar um dos seus slogans de campanha, “SENSO COMUM”, e manifestou confiança de que as conversações poderiam levar a uma “conclusão bem-sucedida, esperemos que em breve”. O entusiasmo do líder norte-americano contrasta com as preocupações dos aliados europeus, que temem que os Estados Unidos estejam a preparar-se para uma solução negociada favorável à Rússia.
O telefonema ocorreu antes de uma conversa com Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, que, sem alternativas, teve de demonstrar abertura ao plano de Trump, apesar da incerteza quanto aos seus detalhes. “Ninguém deseja mais a paz do que a Ucrânia”, escreveu Zelensky na sua conta na rede social X. “Juntamente com os Estados Unidos, estamos a definir os próximos passos para travar a agressão russa e garantir uma paz duradoura e fiável.”
As condições impostas por Washington
Pouco antes da chamada, o secretário da Defesa norte-americano, Pete Hegseth, delineou algumas das condições que os Estados Unidos consideram aceitáveis para a paz. Entre elas, destacou que o restabelecimento das fronteiras ucranianas anteriores a 2014 “não é realista” e que Washington não enviará tropas para garantir a segurança da Ucrânia. Além disso, os aliados europeus ficariam responsáveis pela segurança de Kiev sem contar com a proteção do Artigo 5.º da NATO, o que poderia enfraquecer o compromisso de defesa coletiva da Aliança.
Outro ponto crítico foi a exclusão da Ucrânia da NATO. Hegseth afirmou categoricamente que Kiev não será admitida na Aliança Atlântica, eliminando uma das principais vantagens estratégicas que os europeus ainda esperavam usar nas negociações. “Acabam de entregar um dos pontos de pressão mais importantes antes mesmo do início das negociações”, lamentou Matthew Miller, antigo porta-voz do Departamento de Estado.
Trump também anunciou a equipa que conduzirá as negociações para pôr fim ao conflito. O grupo será liderado pelo secretário de Estado, Marco Rubio, e incluirá figuras como o diretor da CIA, John Ratcliffe, o conselheiro de segurança nacional, Michael Waltz, e o enviado especial para o Médio Oriente, Steve Witkoff. Este último teve um papel relevante ao negociar recentemente a libertação de Marc Fogel, um professor norte-americano detido na Rússia há mais de três anos, em troca do cibercriminoso russo Alexander Vinnik.
No entanto, uma ausência chamou a atenção: Keith Kellogg, o general reformado que Trump nomeou como seu enviado para a Rússia e a Ucrânia, ficou fora da equipa. Kellogg tem sido mais crítico em relação a Moscovo e chegou a sugerir que Trump poderia recorrer a sanções para forçar Putin a um acordo de paz. O facto de ter sido excluído reforça a perceção de que a abordagem da Casa Branca será mais conciliatória para com o Kremlin.
Para Vladimir Putin, esta chamada foi um dos sinais mais positivos que poderia ter recebido. Desde a reeleição de Trump, o líder russo tem elogiado abertamente o presidente norte-americano, sabendo que a prioridade da nova administração é encerrar o conflito rapidamente – e, provavelmente, a um custo muito menor para Moscovo do que antes.
A mudança de postura da Casa Branca representa um desafio para a Europa, que vê a tradicional proteção norte-americana enfraquecer. Desde a assinatura da Carta do Atlântico, em 1941, e a fundação da NATO, em 1949, os Estados Unidos foram o pilar central da segurança europeia. Agora, Trump parece querer virar essa página, deixando a responsabilidade maior do conflito nas mãos dos europeus.
O secretário do Tesouro norte-americano, Scott Bessent, visitou Kiev no mesmo dia da chamada entre Trump e Putin. A missão foi negociar um acordo económico favorável para Washington em troca do apoio militar e financeiro prestado nos últimos três anos. Segundo Zelensky, a administração norte-americana já recebeu um primeiro rascunho desse acordo. Entre as exigências de Washington estão o acesso às reservas ucranianas de terras raras e a utilização das instalações subterrâneas do país para armazenamento de gás natural liquefeito dos Estados Unidos.
A resposta europeia foi rápida. Os ministros dos Negócios Estrangeiros de França, Alemanha, Polónia, Reino Unido, Espanha e Itália reuniram-se em Paris, juntamente com Kaja Kallas, Alta Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança. No final do encontro, divulgaram um comunicado conjunto em que reafirmaram o compromisso com a soberania e integridade territorial da Ucrânia e sublinharam a necessidade de uma paz “justa, global e duradoura”.
O documento também destaca que “a Europa deve ter um lugar à mesa de negociações”, uma posição que Zelensky tem vindo a defender, mas que Trump parece ignorar. Os líderes europeus insistiram que a segurança do continente depende de uma solução negociada que envolva tanto os Estados Unidos como a UE.
Donald Tusk, primeiro-ministro da Polónia, fez eco destas preocupações. “O que precisamos é de paz. UMA PAZ JUSTA. Ucrânia, Europa e Estados Unidos devem trabalhar juntos para alcançá-la. JUNTOS”, escreveu nas redes sociais.
A apreensão europeia não é nova. Em 2022, semanas antes da invasão russa, a administração Biden manteve os líderes da UE à margem das negociações com Moscovo para tentar evitar o conflito. Agora, o receio de ser novamente excluída está mais presente do que nunca.
Enquanto Trump sinaliza uma nova abordagem em relação à Ucrânia, reforça também a sua proximidade a Moscovo noutras áreas. O Senado norte-americano confirmou recentemente Tulsi Gabbard como diretora de Inteligência Nacional. Veterana da Guerra do Iraque e ex-democrata convertida ao Partido Republicano, Gabbard tem sido criticada por defender posições próximas às do Kremlin. Em 2022, após a invasão da Ucrânia, afirmou que o conflito poderia ter sido evitado se a NATO e os EUA tivessem reconhecido as “legítimas preocupações de segurança da Rússia”.
A mudança estratégica de Trump parece ir além da Ucrânia. Nos últimos meses, o presidente norte-americano mostrou interesse em questões territoriais que até agora não tinham estado na sua agenda, como a soberania sobre partes do Canadá, Groenlândia e até o Canal do Panamá. Com esta nova postura, Trump deixa claro que o antigo paradigma pós-1945 de segurança coletiva e atlantismo está em vias de ser substituído por um pragmatismo de poder, onde os Estados Unidos olham cada vez mais para os seus próprios interesses e para a Ásia-Pacífico.
Para a Europa, a mensagem de Trump é inequívoca: se quer continuar a apoiar a Ucrânia, terá de fazê-lo sozinha.














