Europa é o elo mais fraco da NATO: por que razão não está preparada para se defender?
Após décadas preocupados com operações de contra-insurreição em terras distantes, os membros europeus da NATO estão a contemplar um cenário que não estava ‘nos planos’ desde a queda da União Soviética – a possibilidade de uma guerra terrestre em grande escala no seu próprio território.
No entanto, tal campanha poderá ter de ser travada sem todo o poder de fogo dos Estados Unidos, o aliado indispensável que garantiu a segurança da região durante a Guerra Fria – e desde então.
Para muitos europeus, o maior risco para o ‘status quo’ parece vir de Donald Trump. “Os nossos aliados aproveitaram-se mais de nós do que dos nossos inimigos”, salientou o ex-presidente americano, numa entrevista à ‘Bloomberg’ – chegou ao ponto de sugerir que, se fosse reeleito, os EUA só ajudariam os aliados que cumprissem a meta de gastos militares da NATO, uma posição que põe em causa o compromisso de defesa coletiva do artigo 5 da aliança.
No entanto, os comentários de Trump refletem uma corrente de pensamento que transcende a divisão política de Washington e pode prevalecer para quem quer que ganhe as eleições presidenciais dos EUA a 5 de novembro: que os Governos europeus deveriam construir as suas próprias forças armadas poderosas em vez de manterem orçamentos de defesa escassos, seguros de que o pacto de defesa mútua com os EUA irá protegê-los dos invasores.
Aqueles que defendem o reforço da defesa europeia são motivados tanto pelo pragmatismo como pela justiça. A ascensão da China como potência militar, com os seus desígnios na contestada ilha de Taiwan, fez com que os responsáveis americanos apostassem num cenário em que seriam forçados a desviar armamento de longo alcance do Atlântico Norte para travar uma guerra na Ásia Oriental.
Isto poderia deixar a Europa perigosamente exposta. A guerra na Ucrânia, o conflito mais mortífero no continente desde 1945, demonstrou a determinação do presidente russo, Vladimir Putin, em criar uma maior esfera de influência para Moscovo no antigo espaço soviético. Ou seja, se um membro oriental da NATO se tornasse o seu próximo alvo, os seus aliados seriam obrigados a correr em seu auxílio.
A maior parte da comunidade militar europeia não tem experiência no planeamento ou comando de operações de forças combinadas de grande escala que envolvam várias nações. É sobretudo composta por exércitos nacionais separados que, para efeitos da NATO, confiam nos EUA para a liderança e coordenação. Todos os Estados-membros da NATO reduziram as tropas e o equipamento militar desde a Guerra Fria. Mas os cortes mais profundos chegaram da Europa – os orçamentos de defesa tornaram-se um pote para financiar prioridades mais prementes. Assim, como resultado, grande parte das forças armadas da Europa tornaram-se, na opinião de alguns especialistas em defesa dos EUA, um “exército Potemkin” que está mal preparado para travar e vencer uma guerra prolongada.
E nem é a história completa: a verdadeira capacidade militar exige que as tropas estejam bem equipadas e treinadas. Um veículo de combate blindado com manutenção deficiente, uma arma degradada, uma brigada com falta de munições e linhas de abastecimento para travar uma guerra sustentada, um míssil que falha porque não foi testado em batalha – todos eles esgotam a eficácia de um exército de formas que estão muitas vezes fora da vista do público.
A Rússia também reduziu o seu exército na década de 1990, em parte porque a sua economia estava em colapso e grande parte do equipamento estava obsoleto. Em 2008, uma guerra com a Geórgia expôs o estado degradado das forças armadas da Rússia, e Putin embarcou numa ampla modernização do equipamento militar do país. Com os esforços da Rússia para absorver a Ucrânia a revelarem novamente as limitações das suas forças armadas e a resultarem em pesadas baixas, Putin disse que iria expandir as forças armadas do país para 1,5 milhões de soldados, o que o tornaria o segundo maior exército do mundo, atrás da China.
Sem todo o poder das forças armadas dos EUA do seu lado, os membros europeus da NATO poderão ter dificuldades em enfrentar um invasor tão poderoso – para não falar de o dissuadir, em primeiro lugar.
Os Governos europeus começaram a comprometer mais despesas com a defesa. Muito deste dinheiro será necessário simplesmente para reconstruir e reforçar os ativos que já possuem. Continuarão a contar com os EUA em áreas críticas, como a defesa aérea e antimíssil e os sistemas informáticos avançados necessários para conduzir uma guerra moderna.
Mas em que estado está a Europa militarmente? A ‘Bloomberg’ consultou especialistas militares para analisar o estados das forças armadas europeias e as lacunas que necessitam de ser colmatadas para restaurar a sua credibilidade.
Gastos Militares
Os membros da NATO concordaram em 2014 que gastariam, cada um, pelo menos 2% do seu PIB em defesa até 2024. Espera-se que cerca de 23 dos 32 aliados atinjam a meta – contra apenas 10 países em 2023. Mesmo que os membros europeus atingissem coletivamente o nível dos EUA (cerca de 3,5% do PIB), os seus gastos ainda estariam atrás dos da sua superpotência aliada.
Tão importante como quanto será gasto é como… O desempenho passado da Europa no que diz respeito à compra de equipamento militar é fraco. Muitas vezes colocam ênfase na compra de sistemas dispendiosos e de alta tecnologia que embelezam o seu prestígio, em vez de manter ou substituir adequadamente o que já possuem.
A guerra na Ucrânia mostrou que, mesmo na guerra moderna, a capacidade de fornecer grandes quantidades de armas, munições e outros produtos básicos antigos continua a ser tão importante como há um século. A Rússia está prestes a produzir quase 3 milhões de projéteis de artilharia este ano – quase três vezes a produção combinada dos EUA e da Europa –, de acordo com as estimativas dos serviços de informação da NATO.
Ao enviarem equipamento militar para apoiar a defesa da Ucrânia, os Governos europeus ficaram angustiados com a questão de quanto enviar, em parte por receio de esgotarem os seus próprios e limitados arsenais. Mas até no reforço destes arsenais há limitações: a Europa tem-se concentrado tradicionalmente no estímulo das economias nacionais e na criação de emprego, o que torna mais difícil coordenar as aquisições para que a região obtenha o equipamento de que necessita ao preço mais baixo possível. Conduz também a disfunção no campo de batalha: subtis diferenças de design fazem com os projéteis de artilharia de 155 mm produzidos por alguns membros da NATO sejam incompatíveis com os sistemas de outros aliados.
Tropas
O Reino Unido e a França são as potências militares proeminentes da Europa, mas ambos reduziram o número de tropas desde a Guerra Fria. As forças armadas ativas da França diminuíram 56% entre 1990 e 2024, para 203.850. O Reino Unido ainda está a cortar: o exército britânico será reduzido para 73 mil soldados até 2025 – o nível mais baixo desde as guerras napoleónicas de 1803-1815. A Alemanha poderia possivelmente enviar uma brigada – com alguns milhares de soldados – para os países bálticos e isso “seria considerado um feito”, indicou Max Bergmann, diretor para a Europa, Rússia e Eurásia do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, sediado em Washington.
A França poderia mobilizar 20 mil soldados em 30 dias, segundo o chefe de comando conjunto do seu exército terrestre, o general Pierre Schill. O Reino Unido poderia, na melhor das hipóteses, reunir uma divisão entre 20 e 30 mil soldados, embora isso provavelmente demorasse mais de um mês, apontou Matthew Savill, do Royal United Services Institute (RUSI), um think tank de defesa e segurança com sede em Londres. “As perdas de 31 mil soldados da Ucrânia contra a Rússia representariam o fim da força de combate do exército britânico”, disse. “Pode-se tentar reunir uma segunda divisão que pudesse aumentar e construir – só que não teria muitos veículos.”
Veja-se a diferença para o outro lado do Atlântico: só as forças especiais americanas totalizam cerca de 70 mil, e os EUA têm cerca de 80 mil militares estacionados só na Europa.
Cerca de 90 mil soldados da NATO passaram os primeiros cinco meses de 2024 a colaborar no Steadfast Defender, o seu maior exercício militar desde a Guerra Fria. A aliança está a estabelecer aquilo a que chama um novo modelo de força destinado a enfrentar melhor a ameaça da Rússia no seu flanco oriental, que se estende desde o Mar Báltico, a norte, até ao Mar Negro, a sul.
Isto envolveu a colocação de mais de 300 mil militares em maior prontidão para serem mobilizados num prazo mais curto. A NATO tem vindo a deslocar tropas para expandir a sua chamada presença avançada – acrescentando mais forças multinacionais nos locais que provavelmente necessitaria de defender primeiro num conflito. A Alemanha planeia estabelecer uma brigada permanente de até 5 mil soldados na Lituânia até ao final de 2027.
Alguns generais europeus têm apelado à reintrodução do recrutamento em massa, embora a onda de recrutas resultante não substitua o tipo de soldados profissionais e altamente treinados necessários na guerra moderna.
A recente introdução da Suécia e da Finlândia na NATO traz uma infusão bem-vinda, mas não contraria a crise no recrutamento militar europeu – prejudicado por más impressões da vida no serviço. A diminuição das forças armadas da Europa está, até certo ponto, a autoperpetuar-se, uma vez que a diminuição do seu perfil na sociedade civil significa que muitos jovens nem sequer consideram a possibilidade de uma carreira militar.
Logística
Não faz sentido treinar uma unidade de combate se não a puder mover rapidamente e fornecer-lhe os recursos para uma luta sustentada. O exército dos EUA pode duplicar as linhas de abastecimento de combustível, alimentos e munições através de múltiplas brigadas blindadas. Os recursos logísticos da Europa são mais pequenos, menos flexíveis e menos testados. Durante a Guerra Fria, os membros da NATO tinham um sistema de gasodutos de combustível dedicado para abastecer as forças aliadas estacionadas em toda a Europa Central. Quando a União Soviética entrou em colapso e a NATO se expandiu para leste, não foi criada uma infraestrutura comparável e padronizada – em parte porque os membros da aliança mudaram o seu foco para o planeamento de operações para locais como o Iraque, a Líbia, o Sudão e o Paquistão.
Poder Naval
Os navios são cruciais numa guerra terrestre moderna. As forças aéreas precisam de pistas e os exércitos movem-se lentamente. As marinhas rapidamente destacam o tipo de armamento de longo alcance que pode destruir quantidades significativas de equipamento inimigo em terra e no mar.
A realidade é dura para a Europa: alguns submarinos dos EUA transportam mais Tomahawks do que toda a Marinha Real do Reino Unido provavelmente tem em stock, de acordo com os cálculos da RUSI.
A França tem um porta-aviões de grande escala, o ‘Charles de Gaulle’, que normalmente transporta cerca de 30 caças Rafale. O Reino Unido possui dois destes navios, que juntos têm capacidade para acolher 48 jatos de combate F-35, bem como helicópteros. Mas prevê-se que tenha apenas 37 aviões de combate até ao final de 2024 – um único porta-aviões da classe Nimitz dos EUA, dos quais existem 10, tem uma ala aérea de até 69 aeronaves.
Orçamentos escassos atrasaram a chegada de uma nova geração de navios de guerra da Marinha Real e dos submarinos que transportam as armas nucleares da Grã-Bretanha. Como resultado, grande parte da frota atual está a operar para além da sua vida útil designada e está mais sujeita a problemas de manutenção. Em abril último, apenas um quinto dos principais navios de combate de superfície da Marinha Real estavam ativos ou imediatamente utilizáveis, de acordo com dados da ‘UK Defense Journal’.
Algumas nações europeias estão a tomar medidas para reconstruir a sua força naval e adicionar mais armamento aos navios que encomendaram. Mas os navios têm alguns dos prazos de construção mais longos de qualquer equipamento militar. Enquanto isso, as marinhas da região lutam para encontrar marinheiros para abastecer os navios que já possuem. No início de 2024, o Governo britânico disse que estava a desativar duas das suas 11 fragatas da Marinha Real – de acordo com o jornal ‘Telegraph’, tal devia-se à falta de mão-de-obra.
Poder Aéreo
A maior parte dos mísseis balísticos e de cruzeiro de longo alcance da NATO, que em combate seriam impulsionados a centenas de quilómetros a partir de baterias móveis e navios de guerra, são fornecidos pelos EUA. E a Europa não possui sistemas antimíssil do tipo Patriot em números que constituam uma defesa eficaz contra os projéteis que se aproximam.
O conflito na Ucrânia mostrou que é difícil obter vantagem numa guerra terrestre moderna sem o domínio do ar. As forças ucranianas empregaram com sucesso drones para derrubar tanques, matar soldados inimigos, destruir depósitos de munições e danificar campos de aviação e refinarias de petróleo. Mas as defesas aéreas bem estabelecidas da Rússia dificultam o voo da força aérea ucraniana. O mesmo desafio surgiria provavelmente se a Rússia invadisse um membro da NATO.
Atualmente, só os EUA poderiam levar a cabo uma supressão e destruição eficazes das modernas defesas aéreas russas. As aeronaves especializadas localizam a fonte das transmissões de radar dos sistemas de defesa antimíssil inimigos – isso obrigaria o inimigo a desligar o equipamento para evitar que seja destruído por mísseis, criando uma janela para atacar os ativos do inimigo no terreno.
As atuais defesas aéreas russas são mais difíceis do que nunca de derrotar, pois combinam sistemas de defesa antimíssil de longo, médio e curto alcance. O objetivo disto é garantir que, quando um nó do sistema é forçado a ficar escuro, as outras camadas continuam a fornecer proteção. Além disso, as baterias de mísseis e as unidades terrestres associadas estão constantemente em movimento para impedir um ataque.
Ou seja? A falta de capacidade local da Europa para estas missões complexas é a deficiência mais grave identificada pelo Comando Aéreo da NATO, apontou Justin Bronk, especialista em poder aéreo e tecnologia da RUSI em Londres.
A perspectiva
Até agora, a reconstrução das capacidades militares da Europa tem sido fragmentada e de âmbito limitado.
Os desenvolvimentos positivos incluem o anúncio do chanceler alemão, Olaf Scholz, de um fundo de 100 mil milhões de euros para modernizar as defesas do país; uma expansão significativa das forças armadas da Polónia para a tornar a 3ª maior da NATO, com grande ênfase nas tropas terrestres; um plano holandês para restaurar as forças blindadas de que o país se livrou em 2011; e a chegada de novos helicópteros Apache e canhões Archer para o exército britânico.
Os Governos europeus concordaram que a coordenação dos seus esforços melhoraria o retorno dos seus investimentos. Ou seja, seria necessário afastar-se de uma noção de “capacidade soberana” para uma nova abordagem em que comparam os respetivos meios militares, identificam as lacunas nos seus arsenais coletivos e chegam a acordo sobre quais os Estados-membros que os preencherão.
Um subgrupo de membros – Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca – avançou neste sentido ao criar uma aliança nórdica de defesa aérea para combinar o comando e o controlo; partilhar instalações, informação e consciência situacional; e melhorar a interoperabilidade. O grupo planeia ter quase 250 aviões de combate modernos até ao final da década, dos quais pelo menos metade serão provavelmente F-35.
No entanto, é um caminho espinhoso: a simples decisão de quem irá supervisionar o renascimento da defesa da Europa tornou-se uma fonte de tensão. A Comissão Europeia está empenhado em liderar o esforço, nomeando mesmo Andrius Kubilius, antigo primeiro-ministro da Lituânia, o seu primeiro “comissário de defesa e espaço” – recebeu também um crédito considerável pelo rápido aumento da produção europeia de projéteis de artilharia – que deverá atingir os 2 milhões até ao final de 2025, contra um milhão no início de 2024.
No entanto, o comando da NATO há muito que se opõe a que a UE assuma um papel dominante na defesa da região, dizendo que isso poderia duplicar esforços e desviar recursos. No seu último discurso público como secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg alertou a UE contra a construção de uma alternativa concorrente à aliança.
Seja quem for que assuma a liderança, a reconstrução das defesas da Europa exigiria muito dinheiro: alguns responsáveis de segurança dizem que as despesas militares europeias poderão ter de aumentar até 4% dos orçamentos nacionais — níveis nunca vistos desde o fim da era soviética — para garantir que a NATO consegue lidar com as ameaças emergentes.
Mas a NATO funciona a muitas vozes: por enquanto, há pouco ímpeto na aliança para rever a meta de 2% em alta – até porque, nesta altura, a aliança está a debater se os membros devem ser autorizados a incluir a ajuda militar à Ucrânia como parte das suas despesas mínimas.