Do Qatargate ao Belgiangate: Ex-vice-presidente do Parlamento Europeu continua sem julgamento três anos após o escândalo

Três anos depois das primeiras detenções no grande escândalo de corrupção que abalou Bruxelas em dezembro de 2022, a antiga vice-presidente do Parlamento Europeu Eva Kaili permanece num impasse judicial, enquanto o processo se arrasta entre contestações, recusas de juízes e disputas sobre a legalidade de métodos de investigação.

Pedro Gonçalves
Dezembro 12, 2025
18:11

Três anos depois das primeiras detenções no grande escândalo de corrupção que abalou Bruxelas em dezembro de 2022, a antiga vice-presidente do Parlamento Europeu Eva Kaili permanece num impasse judicial, enquanto o processo se arrasta entre contestações, recusas de juízes e disputas sobre a legalidade de métodos de investigação. O caso voltou ao centro do debate europeu após a detenção, já este mês, da antiga chefe da diplomacia europeia Federica Mogherini, investigada num processo autónomo por alegada fraude em contratos ligados a formação diplomática financiada pela União Europeia.

A detenção de Mogherini — que liderou a diplomacia da UE entre 2014 e 2019 e dirigia o Colégio da Europa — reacendeu discussões sobre a lentidão da justiça belga perante um caso que, desde 2022, já recolheu mais de 1,5 milhões de euros em numerário. A antiga alta responsável foi ouvida sob suspeita de fraude em contratação pública, corrupção e conflito de interesses, tendo posteriormente sido libertada, mas acabou por renunciar ao cargo académico que ocupava.

É neste contexto que a investigação sobre o chamado “Qatargate”, agora muitas vezes referido como “Belgiangate”, continua envolta em incerteza. As primeiras buscas, realizadas a 9 de dezembro de 2022, revelaram €600 mil em casa do antigo eurodeputado italiano Antonio Panzeri e €150 mil no apartamento de Eva Kaili em Bruxelas, valor que, segundo as autoridades, estava guardado em sacos de grandes dimensões. No mesmo dia, o pai de Kaili, Alexandros, foi apanhado no hotel Sofitel, na Place Jourdan, com uma mala contendo “várias centenas de milhares de euros”, conforme indicaram investigadores belgas.

Arrombamentos, detenções e suspeitas sobre como a investigação avançou
As operações incluíram a presença de uma equipa especializada e do juiz de instrução Michel Claise, que ordenou a detenção de Kaili em frente à filha de dois anos. Sem imunidade parlamentar, viria a passar quatro meses em prisão preventiva e, depois, em prisão domiciliária com pulseira eletrónica até maio de 2023. Mantendo sempre que é inocente, enfrenta acusações de participação em organização criminosa, corrupção e branqueamento de capitais.

Já Francisco Giorgi, seu companheiro e antigo assistente parlamentar, admitiu ter recebido subornos, mas alegou que Kaili “não estava diretamente envolvida”, procurando afastar a eurodeputada grega da alegada rede de influência atribuída a Qatar, Marrocos e Mauritânia — países que pretendiam, segundo a investigação, influenciar posições do Parlamento Europeu, evitar resoluções críticas sobre direitos humanos e até acelerar a liberalização de vistos para cidadãos do Qatar.

Juiz afastado, acordos contestados e métodos secretos em discussão
O processo tem sido marcado por episódios sucessivos que atrasaram a acusação formal. Em janeiro de 2023, Panzeri assinou um acordo de colaboração com o Ministério Público, comprometendo-se a identificar quem subornou em troca de uma pena mais leve. Mas as defesas contestam a credibilidade do antigo eurodeputado e os métodos usados para obter a sua confissão.

Em junho desse ano, o juiz Michel Claise teve de se afastar do processo ao tornar-se público que o seu filho era sócio empresarial do filho da eurodeputada belga Marie Arena, igualmente implicada no caso. A defesa de Kaili acusou o magistrado de ter protegido Arena ao atrasar a sua acusação — a eurodeputada só viria a ser formalmente acusada em janeiro, não por corrupção, mas por participação em organização criminosa, numa investigação que registou ainda a apreensão de €280 mil na casa do filho de Arena.

O caso conheceu outro capítulo em setembro de 2024, quando um tribunal de Bruxelas ordenou ao Comité R — entidade que supervisiona os serviços secretos belgas — que analisasse a legalidade dos “métodos específicos e excecionais” usados pelo serviço de inteligência VSSE. O organismo já tinha concluído, em janeiro, que os agentes atuaram dentro da lei, mas as defesas acusam a investigação de explorar lacunas legais, lembrando que o crime de interferência estrangeira só foi tipificado no código penal belga em abril de 2024.

Debate sobre a imunidade, gravações secretas e queixas por difamação
A defesa de Kaili tem insistido que a retirada da imunidade foi irregular. Argumenta que os investigadores criaram artificialmente uma situação de flagrante delito ao deter o pai da eurodeputada com a mala de dinheiro para justificar buscas imediatas ao apartamento da então vice-presidente do Parlamento Europeu.

Entretanto, uma gravação divulgada pelo jornal La Libre revelou um investigador a dizer que “Panzeri está a mentir”, o que aumentou as dúvidas sobre a fiabilidade do principal colaborador da acusação. O Ministério Público pretende excluir o áudio, alegando que as circunstâncias da captação são pouco claras, mas os advogados de Kaili defendem que o excerto expõe fragilidades graves no acordo celebrado com Panzeri. A eurodeputada e Giorgi apresentaram mesmo uma queixa por difamação contra ele em Milão, em setembro de 2024.

Kaili conquistou também uma vitória jurídica em julho deste ano, quando o Tribunal Geral da UE concluiu que o Parlamento Europeu tinha recusado indevidamente o acesso da ex-eurodeputada a documentos sobre alegada má gestão de subsídios para assistentes parlamentares, num processo conduzido pela Procuradoria Europeia.

Um processo que cresce, mas que não chega ao tribunal
O caso já abrange pelo menos dez arguidos, entre os quais os antigos eurodeputados Panzeri, Cozzolino e Marc Tarabella, o sindicalista Luca Visentini e o lobista Niccolò Figà-Talamanca. Este ano, os procuradores pediram ainda o levantamento da imunidade das eurodeputadas social-democratas italianas Elisabetta Gualmini e Alessandra Moretti.

A Câmara de Acusações de Bruxelas começou apenas esta semana a analisar a legalidade de toda a investigação, numa fase que envolve mais de duas dezenas de partes. Eva Kaili, que não concorreu às eleições europeias de 2024, vive agora entre Itália e a Grécia, estando os seus bens congelados desde a detenção. Tudo indica que qualquer julgamento, se chegar a avançar, não terá início antes do final de 2026.

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