Tempos de incerteza nos combustíveis

Opinião de Luís Gil, Membro Conselheiro e Especialista em Energia da Ordem dos Engenheiros

André Manuel Mendes
Novembro 10, 2025
10:50

Por Luís Gil, Membro Conselheiro e Especialista em Energia da Ordem dos Engenheiros

Notícias muito recentes informaram-nos que mais de mil milhões de barris de petróleo estão armazenados em petroleiros em todo o mundo, uns em trânsito e outros fundeados a aguardar, refletindo um eventual excesso de oferta deste combustível fóssil. Este excesso de oferta parece ser crescente e uma consultora (Vortexa) refere mesmo o valor de 1,25 mil milhões de barris! Neste momento já se fala em crude “flutuante” mas sem a conotação negativa dos derrames…

Ora este excesso de oferta, associado a uma situação de guerra em que está envolvido um dos principais produtores de petróleo, cujos sistemas de armazenamento e de refinação têm sido atacados persistentemente, levanta preocupações quanto à sustentabilidade dos preços, à logística do fornecimento e à previsibilidade dos mercados relacionados.

Especialistas neste domínio referem que parece haver uma desaceleração da procura de hidrocarbonetos nalguns mercados, nomeadamente no asiático. Referem também que embora a China tenha adquirido volumes significativos de crude para constituir as suas reservas estratégicas, essa procura agora abrandou.

A baixa da procura pode tender a fazer baixar os preços, mas por outro lado o armazenamento prolongado nos petroleiros irá aumentar os custos logísticos. Tudo isto irá fazer com que os grandes produtores e os grandes consumidores tenham que redefinir estratégias.

Acresce ainda o facto de estarmos com uma guerra na Europa. Sem combustíveis líquidos, sobretudo, não se pode operar grande parte do equipamento militar. A logística associada aos combustíveis é absolutamente essencial. Também aqui os combustíveis de baixo carbono poderão vir a ter um papel fundamental, nomeadamente na Europa que carece de combustíveis fósseis. Este desenvolvimento será uma parte importante associada ao rearmamento a que se está a assistir. Interessa à defesa e permitirá dar resposta a situações de crise, devendo ser articuladas as ações (militares e civis) a promover.

Por ser um país pobre em petróleo, mas rico em reservas de carvão, a Alemanha usou o processo de Fischer-Tropsch (FT) durante a Segunda Guerra Mundial para produzir combustíveis sintéticos alternativos. Alguns dados apontam para que a produção FT representou 9% da produção de combustíveis usados na guerra pelos alemães e 25% de combustível para automóvel naquela época. Atualmente muitos outros processos, inclusive baseados em energias renováveis, permitem a obtenção dos chamados combustíveis de baixo carbono (CBC).

Porém, os e-fuels (combustíveis sintéticos produzidos a partir de hidrogénio verde via eletricidade renovável e dióxido de carbono biogénico ou da atmosfera) têm também alguns handicaps. Usualmente são referidos como “carbono-neutros” mas o processo de produção pode ser energeticamente intensivo, pois envolve a eletrólise da água para gerar o hidrogénio, a captura e purificação do dióxido de carbono e posteriormente a síntese química para a produção do combustível final. Cada uma destas etapas provoca perda de eficiência global, não havendo neutralidade total.

Porém, de acordo com um estudo do International Council on Clean Transportation (2018), num cenário com 100% de eletricidade renovável (para onde caminhamos) as emissões de ciclo de vida de veículos movidos com estes combustíveis estão entre 10-20 g CO2/MJ, enquanto que no caso dos combustíveis fósseis esse valor ascende a 94 g CO2/MJ, ou seja, as emissões são significativamente menores com os e-fuels. Acrescendo o facto de que, mantendo os motores de combustão, a logística e os sistemas de abastecimento são os mesmos e os veículos incorporam muitíssimo menos materiais críticos.

A própria Agência Internacional de Energia, num seu relatório de 2023 reconhece que os e-fuels podem desempenhar um papel importante em setores de difícil descarbonização como a aviação e o transporte marítimo.

Ora tudo isto contribui para a situação atual de tempos de incerteza no que se refere aos combustíveis. E se já é difícil tomar decisões quando novos paradigmas se nos apresentam, estas incertezas apenas complicam mais a vida aos decisores políticos.

A União Europeia tem um grande desafio pela frente que é o equilíbrio entre a segurança do abastecimento e a transição energética. Por isso se fala em resiliência energética e autonomia estratégica. Assim, por tudo o que foi atrás descrito, para conciliar a manutenção da capacidade estratégica com a transição energética parecem ser fundamentais políticas de apoio à produção de CBCs em paralelo com outros “caminhos” para a descarbonização da economia.

 

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