A história de Donald Trump é também a história da persistente subestimação do próprio. Nove anos depois de ter conquistado a Casa Branca contra todas as previsões e um ano após ter regressado ao poder com ainda maior apoio popular, o antigo empresário continua a provar que a política, nas suas mãos, é matéria maleável. Depois de ter sido dado como politicamente acabado em 2021, o atual presidente americano transformou o descrédito em combustível político — e a sua terceira ascensão é o reflexo de um país disposto a aceitar que a realidade pode ser moldada pela vontade de um só homem.
Nova ordem mundial à imagem de Trump
A ordem internacional saída de 1945 está a desmoronar. O idealismo das Nações Unidas e das instituições multilaterais cede perante o novo equilíbrio de poder entre Washington, Pequim e Moscovo. Segundo o ‘El Confidencial’, Trump percebeu cedo que a globalização, com as suas cadeias de abastecimento dispersas e dependência da China, se tornara uma vulnerabilidade estratégica para os EUA.
Em resposta, o presidente americano impôs tarifas sobre mais de uma centena de países e lançou um ambicioso programa de reindustrialização, incentivando as empresas a investir no território americano com benefícios fiscais e processos simplificados. O objetivo é claro: restaurar a independência económica e reforçar o poder interno, mesmo que à custa da liberalização comercial que os próprios Estados Unidos promoveram durante décadas.
Rutura com os aliados e reconfiguração da NATO
No plano geopolítico, Trump vê os aliados europeus como dependentes da generosidade americana. Exige que a Europa assuma a sua própria defesa e que a NATO se concentre nas frentes estratégicas que interessam a Washington — a Ásia e as Américas. Para o presidente, os países que se deixaram “amaciar” pelo idealismo e pelas políticas climáticas ou migratórias perderam o vigor e tornaram-se um peso para a superpotência.
De acordo com o ‘El Confidencial’, Trump acredita que apenas a agressividade e a força garantem respeito no sistema internacional. Uma vitória dos partidos de extrema-direita em países como Alemanha ou França poderia acelerar o desmantelamento da União Europeia, eliminando um rival económico e substituindo-o por parceiros bilaterais mais maleáveis.
A teoria do “Concerto das Potências”
Entre os analistas, a politóloga Stacie E. Goddard defendeu na revista ‘Foreign Affairs’ que Trump ambiciona recriar um modelo semelhante ao “Concerto da Europa” do século XIX — um equilíbrio pragmático entre grandes potências, sem idealismos nem instituições globais. No mundo de Trump, os EUA, a Rússia e a China seriam polos de poder equivalentes, respeitando as respetivas esferas de influência e mantendo a estabilidade através da força.
Esse cenário pressupõe o fim da ambição americana de ser o “xerife do mundo” e o abandono da ONU como centro de autoridade moral. A Casa Branca procuraria estabilizar conflitos, como o da Ucrânia, com acordos de conveniência, deixar o Médio Oriente nas mãos de aliados regionais e negociar com Pequim uma trégua estratégica que implicaria fechar os olhos a Taiwan.
Da Doutrina Monroe à “Grande América”
Trump já manifestou, por diversas vezes, ambições territoriais que evocam o expansionismo do século XIX. Falou em adquirir a Gronelândia e chegou a fantasiar com a integração do Canadá como o “51.º Estado” americano — uma “bela massa de terra”, nas suas palavras. A lógica é a mesma: garantir recursos estratégicos, controlo do Ártico e segurança autossuficiente num mundo dividido em blocos.
Esta visão é acompanhada por uma versão moderna da Doutrina Monroe, já apelidada de “Doutrina Donroe” pelo ‘Wall Street Journal’, que coloca o continente americano sob tutela direta dos Estados Unidos. A influência sobre governos de direita na América Latina e o apoio económico a aliados como Javier Milei, na Argentina, são exemplos dessa política hemisférica agressiva.
Repressão interna e consolidação do poder
A política externa expansionista reflete-se no interior do país. Trump tem reconfigurado as Forças Armadas, promovendo lealdades pessoais e afastando oficiais considerados “liberais”. Ao mesmo tempo, endureceu o controlo sobre a comunicação social e as plataformas digitais, pressionando tribunais e corporações mediáticas a alinhar com a sua narrativa.
Dezenas de milhares de funcionários públicos foram afastados, e organizações democratas estão sob investigação ao abrigo da Lei RICO, utilizada tradicionalmente contra o crime organizado. O presidente promete ainda classificar o movimento “antifa” como organização terrorista, medida que permitiria criminalizar o ativismo progressista.
Um país militarizado e dividido
Em várias cidades, a presença de militares e agentes federais tornou-se rotina. A Casa Branca justifica a criação de uma “força de reação rápida” para restaurar a ordem onde considerar necessário, abrindo caminho à aplicação da Lei da Insurreição — o mecanismo mais próximo da lei marcial nos Estados Unidos.
Num contexto de crescente militarização e controlo da informação, a oposição política perde terreno. O Partido Democrata enfrenta limitações financeiras e territoriais, enquanto o espaço cívico é corroído por medo e desinformação.
A hipótese de Trump 3.0
Com as eleições de 2028 no horizonte, cresce o debate sobre a possibilidade de Trump tentar um terceiro mandato, algo proibido pela Constituição. A discussão, alimentada por insinuações e provocações do próprio presidente, começa a ganhar terreno entre apoiantes que preferem segurança à democracia liberal.
Se tal cenário se confirmar, os Estados Unidos poderão transformar-se num regime híbrido — formalmente democrático, mas dominado por uma elite política e militar leal a Trump. Washington converter-se-ia no epicentro de uma nova oligarquia americana, onde o poder se perpetua sob o pretexto da estabilidade nacional.
Em síntese, o mundo de Donald Trump assenta numa ideia simples: a política é um jogo de força, não de princípios. Entre o realismo geopolítico e o autoritarismo interno, o presidente procura moldar a América — e o planeta — à sua imagem.














