Debate Saúde: 2025 será o ano do equilíbrio
A crise instalada no Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem contribuído, nos últimos anos, para o crescimento do sector segurador. De acordo com um estudo recente da consultora e corretora de seguros WTW, são já mais de 4 milhões os cidadãos portugueses que recorrem a seguros para poderem ter acesso a cuidados de saúde no sector privado. Uma tendência que se deve também ao crescimento da oferta – inclusive por parte de empresas fora do indústria da Saúde que passaram a oferecer produtos com uma componente de risco associado –, mas que tem, em certa medida, contribuído para o desequilíbrio e a escalada dos custos no sector, empolando o debate em torno da sustentabilidade de todo o sistema.
O tema deu o mote ao mais recente debate de Saúde promovido pela Marketeer/ Executive Digest, onde responsáveis de empresas de diversos subsistemas da Saúde debateram as causas e efeitos desta tendência. E uma das consequências que têm sido mais notórias no mercado é a inevitável «actualização de preços» dos seguros de saúde. Face ao aumento de utilização dos seguros, sobretudo nesta fase pós-pandémica, as empresas seguradoras tiveram que «fazer alguns ajustes, quer ao nível de prémios, quer na redução de alguns custos». Também os prestadores de saúde têm vindo a mexer nos preços dos seus serviços, porque havia casos em que «não eram actualizados desde 2011» e os custos «aumentaram de forma significativa», em áreas como recursos humanos, inovação ou cibersegurança. «Isso, no final do dia, penaliza muito quem paga, que somos nós todos», lembram os presentes no debate.
O aumento dos prémios dos seguros é necessário para um maior equilíbrio do sistema e é provável que volte a acontecer no próximo ano, mas até onde é possível ir? Já se começa a notar no mercado uma diminuição das pessoas que tinham apólices. As empresas também têm vindo a baixar os capitais próprios e as coberturas para manter ou baixar os prémios. «Pode haver quatro milhões de pessoas seguradas, mas se olharmos para os produtos seguradores que essas pessoas têm, há uma tendência de downgrade. Muitas vezes, estamos a chamar seguros a planos de saúde, que não têm uma verdadeira cobertura de risco e o próprio cliente não tem essa percepção», sublinham os responsáveis. «Isto é o mercado já a dar sinais que não tem capacidade para pagar mais. Não podemos indefinidamente actualizar preços, porque os clientes vão deixar de ter capacidade financeira para pagar», reforçam.
Nesse sentido, importa colocar novamente a questão: até onde e quando será possível aumentar preços? «Até haver um equilíbrio. Isto tem de ser um bom negócio para todas as partes – o cliente, os prestadores e os financiadores», analisam. Não obstante, há quem arrisque uma previsão: «2025 se calhar será o ano do equilíbrio. 2024 foi, do lado das seguradoras, um ano de mudança e de eficiência. E foi o ano em que a “saúde guiada” se tornou um chavão. A saúde tem de ser guiada e isso tem a ver com literacia, com o excesso de uso que há, muitas das vezes, e que provoca um desequilíbrio no sistema. Temos de guiar as pessoas pelo sistema.»
João Estevão (CUF), Luísa Silva (Sanofi), Maria do Carmo Silveira (Ageas), Marta Cunha (Germano de Sousa), Pedro Silva (ANF – Associação Nacional das Farmácias), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sónia Ratinho (EQA Medicina Integrativa), Vitor Almeida (Lusíadas Saúde), Maria Perdigão (Generali Tranquilidade) e Maria Vasconcelos (Multicare) foram os participantes no pequeno-almoço debate da Saúde, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.
SAÚDE DE PROXIMIDADE
Outra tendência no mercado é o crescimento da saúde de proximidade, que está muito relacionado com o aumento dos serviços prestados pelas farmácias. Hoje, mais do que a simples dispensa de medicamentos, as farmácias têm sido um aliado do SNS, por exemplo, na campanha de vacinação contra a gripe e a Covid-19 (desde o ano passado) e têm vindo a ter um papel crescente na sensibilização da população, nomeadamente através da realização de rastreios de doenças como o cancro colorrectal, em conjunto com parceiros, como as seguradoras ou associações de doentes. E continuam, em conjunto com o SNS, a trabalhar noutras frentes, como a implementação do regime de dispensa em proximidade de medicamentos prescritos para ambulatório hospitalar, que está em expansão para outras farmácias e regiões do País.
«Desde o período de pandemia, foram dados passos gigantes relativamente ao nível dos serviços de saúde» promovidos pelas farmácias, frisam os participantes no pequeno-almoço debate. Por vezes, muitos desses avanços foram assumidos pela rede de farmácias, que deu, por exemplo, início ao regime de dispensa em proximidade sem ter o serviço remunerado – só em Novembro arrancou a fase de testes para o novo regime, que já prevê a remuneração. «Esse esforço que a rede de farmácias tem assumido, tem desbloqueado muitas oportunidades e precipitado muitas decisões», sublinham.
Nesse sentido, os responsáveis defendem que as farmácias podem ser o tal ponto de equilíbrio que é necessário, na acessibilidade do doente e na literacia em Saúde. «2025 vai ser um ano de transição para as farmácias, que vão ter que aproveitar a oportunidade da entrada em novos serviços, como a vacinação, rastreios, medicação, orientação para os exames de rotina… Há um mundo que vai voltar a abrir para as farmácias», reiteram.
Este tema da saúde de proximidade será fulcral para o futuro e a sustentabilidade do sector. E se, hoje, a farmácia tem um papel central de encaminhamento e orientação do paciente, algumas unidades de saúde públicas, como as ULS (Unidades Locais de Saúde), também já têm uma gestão diferente do paciente, conseguindo prestar um acompanhamento de proximidade que o hospital não consegue.
Também os laboratórios têm vindo a atravessar um período de reestruturação desde a pandemia, alterando um pouco o seu paradigma. Se antes estavam mais focados no diagnóstico, hoje trabalham cada vez mais a prevenção, a inovação (sobretudo em áreas como genética ou a oncologia) e a literacia em Saúde. «Em termos de comunicação, informação e serviço estão a mudar o paradigma. E, em termos estruturais, a reajustar-se, porque o investimento durante a pandemia foi grande em termos de equipamentos e recursos.»
Todas estas tendências estão relacionadas com a “velha” questão da integração de serviços públicos e privados, sobretudo no caso das doenças crónicas, que são as que mais crescem e o SNS, muitas vezes, não consegue dar resposta. «Não há uma óptica de gestão [no sector público] para saber quanto é que custa um doente com uma doença crónica se não for tratado devidamente. Provavelmente, ficaria mais barato para o Estado fazer uma parceria com o privado para tratar os doentes com diabetes, por exemplo», defendem os participantes.
Há, no entanto, algumas medidas em vigor que têm vindo a promover essa integração entre o sector público e privado. Actualmente, está implementado um modelo de referenciação, por exemplo, na área do encaminhamento cirúrgico para o sector privado, através do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) e dos chamados “vales-cirurgia”. A medida visa combater os prolongados tempos de espera, mas os responsáveis à volta da mesa lembram que, em muitos casos, o Estado propõe ao sector privado fazer uma cirurgia com reduções substanciais no preço, o que se torna insustentável. «O modelo está bem desenhado, mas falta uma parte importante: os prestadores de saúde privados têm de ser remunerados de uma forma justa», advogam.
Não obstante, o que se conclui é que há um conjunto de serviços complementares que são vitais para a sustentabilidade do SNS e que estão a provocar uma mudança do hospital como o conhecemos e que tenderá a ser visto cada vez menos como um “centro comercial de saúde”. «Isto passou-se há uns anos com a grande distribuição. Quando apareceu nos anos 80, era óptimo ir ao hipermercado. Depois, com o passar do tempo, as pessoas começaram a ir ao supermercado de bairro. Com muitas aspas, há uma analogia aqui. Quando surgiram os hospitais privados, encantámo-nos com a ideia do grande hospital onde podíamos fazer tudo, mas isto vai deixar de acontecer. O hospital vai continuar a existir para certos serviços, mas a saúde de proximidade vai explodir», explanam os participantes.
PERSPECTIVAS PARA 2025
Os desafios no sector da Saúde são muitos e, por vezes, transversais aos diferentes subsistemas. Do lado das farmacêuticas, 2024 acabou por ser um «ano razoável», com um crescimento do lado do mercado ambulatório – embora liderado pelas companhias de medicamentos genéricos – e um crescimento mais expressivo no mercado de venda livre, que nalguns casos chega aos dois dígitos. Contudo, se receitas cresceram, os custos também «aumentaram significativamente » e põem em risco a continuidade de alguns produtos no mercado. Após o início da guerra na Ucrânia, houve um aumento significativo do lado dos custos, que não foi acompanhado por uma subida dos preços, que no mercado nacional são fixos. Nesse sentido, algumas companhias farmacêuticas equacionam a retirada do mercado de alguns produtos.
O próximo ano não se afigura como menos desafiante para as empresas do sector da Saúde. Desde logo, pelo tema dos recursos humanos, que continuam a escassear. Os prestadores de saúde privados, por exemplo, têm hoje muita dificuldade em manter enfermeiros e corpos clínicos, porque a concorrência no sector é grande. E deverá acenturar-se nos próximos tempos, porque «há muitos players internacionais com os olhos postos no mercado português» e que já anunciaram investimentos em novos hospitais, clínicas e laboratórios.
Nesse sentido, 2025 será, além de um ano de equilíbrio, um ano de adaptação, em que todo o ecossistema terá que continuar a articular-se em prol da sustentabilidade do sector. «Todos nós temos o dever de estar disponíveis [para apoiar o SNS] e temo-lo feito, inquestionavelmente. Podemos ajudar a construir um ecossistema melhor», reiteram os responsáveis à volta da mesa.
E deixam ainda um desejo para 2025: «Que paremos um bocadinho de discutir ideologia e política. A Saúde merece uma discussão mais assertiva. O elefante está na sala e temos de encará-lo.»
Este artigo faz parte do Caderno Especial “O futuro da Saúde”, publicado na edição de Novembro (n.º 224) da Executive Digest.