“É um erro pensar que Putin é uma besta; ele teme a escalada nuclear”, afirma diretora ucraniana do Centro de Não Proliferação de Odessa
A intensificação da retórica nuclear russa e as alterações recentes na doutrina de dissuasão de Vladimir Putin têm gerado inquietação global, especialmente depois do anúncio desta terça-feira, que viu o Presidente russo a assinar um decreto que diz que um ataque nuclear por parte de Moscovo pode ser justificado se ocorrer em resposta a uma “agressão contra a Rússia e seus aliados por qualquer estado não nuclear apoiado por um estado nuclear” ou a um ataque aéreo em larga escala com armas não nucleares. Polina Sinovets, diretora do Centro de Não Proliferação de Odessa (OdCNP), analisa estas mudanças e explica que, longe de ser um líder impulsivo, Putin age de forma calculada para maximizar ganhos enquanto evita riscos graves, incluindo uma escalada nuclear.
Em setembro, o Kremlin anunciou alterações significativas na sua doutrina nuclear, ampliando os cenários em que se reserva o direito de usar armas nucleares. Agora, a Rússia considera um ataque de um Estado não nuclear, apoiado por um Estado nuclear, como um ataque conjunto contra a Federação Russa. Este princípio aplica-se também a ataques massivos com drones.
De acordo com Sinovets, em entrevista ao El Mundo, estas mudanças têm como objetivo claro dissuadir o Ocidente de permitir que a Ucrânia ataque território russo com armamento fornecido por países aliados. “Putin está a redesenhar as linhas vermelhas. Ele quer evitar que o Ocidente autorize a Ucrânia a usar armas ocidentais para atingir alvos em solo russo”, explica.
Sinovets destaca que, apesar de ser frequentemente retratado como imprevisível, Putin é um estratega racional que evita confrontos diretos com adversários mais fortes. “Ao longo da sua carreira, Putin nunca atacou um inimigo mais forte ou sequer igual. Ele calcula cuidadosamente os riscos, procurando sempre maximizar os seus benefícios com o menor custo possível”, observa.
A especialista considera que o Ocidente comete um erro fundamental ao interpretar Putin como uma figura imprevisível e emocional. “O principal erro do Ocidente é pensar que Putin é uma besta, capaz de escalar o conflito apenas por mau humor. Ele não quer ver a Rússia em ruínas ou o seu regime ameaçado por uma escalada nuclear”, afirma.
A tensão entre dissuasão e escalada
Segundo Sinovets, enquanto o Ocidente hesita perante a possibilidade de uma escalada nuclear, Putin utiliza essa incerteza para fortalecer a sua posição. “Putin está a dissuadir o Ocidente mais do que o Ocidente o dissuade a ele. Ele sabe que o medo de uma escalada nuclear paralisa as decisões ocidentais”, analisa.
Ainda assim, a especialista assinala que Putin é sensível à ameaça de uma escalada convencional significativa por parte dos EUA, Reino Unido e França. “Em 2022, quando a Administração Biden avisou que um ataque nuclear contra a Ucrânia resultaria numa resposta militar convencional coordenada, Putin recuou. Ele deixou de falar em escalada nuclear durante um ano”, relembra.
Sinovets defende que, à medida que o Ocidente fornece armamento à Ucrânia, é crucial estabelecer limites claros sobre os alvos permitidos em território russo. “Embora atacar aeródromos seja razoável, os radares de alerta estratégico, por exemplo, podem ser alvos sensíveis que não deveriam ser tocados, pois são vitais para a dissuasão estratégica”, alerta.
A responsável também enfatiza que, enquanto Moscovo desloca recursos militares para regiões mais distantes, os ataques ucranianos, mesmo que limitados, enviam um sinal claro de que o Ocidente continua a apoiar a resistência ucraniana.
Para Sinovets, as chamadas “linhas vermelhas” da Rússia são deliberadamente ambíguas. “Nunca há uma linha vermelha clara. O Kremlin dá pistas, e o Ocidente transforma essas pistas em linhas vermelhas. No entanto, algumas existem, como o colapso total das forças russas ou algo que ameace diretamente a sobrevivência da Rússia como um estado poderoso”, explica.
Embora Putin seja um estratega calculista que evita riscos desnecessários, a incerteza e o medo de uma escalada nuclear continuam a influenciar as decisões ocidentais, muitas vezes em benefício do Kremlin. A especialista conclui: “É crucial que o Ocidente entenda a racionalidade de Putin e não se deixe dominar por receios infundados.”