Porque é que a chegada da dengue à Europa pode significar um desastre para o resto do mundo

Em agosto, Paris já viu um cenário que seria mais provável assistir, até agora, em regiões tropicais: autoridades locais a fumigarem a cidade contra a ameaça do mosquito-tigre asiático. O evento é consequência de uma realidade detetada pela saúde pública: a dengue, doença mortal transmitida por aquela espécie de mosquito, já chegou de facto à Europa.

Em 2022, o continente viu mais casos locais de dengue do que no total da década anterior. Foram 71, 65 dos quais em França e seis em Espanha, segundo os dados do Centro Europeu para Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC). A subida marca uma ameaça para a saúde, mas uma oportunidade para as vacinas e tratamentos contra a doença, o que podia levara a um ‘abanão’ na industria farmacêutica para aumentar o investimento no estudo de uma doença que é subvalorizada, e que assim beneficiaria países que há muito a combate como o Bangladesh, as Filipinas ou o Brasil.

Mas poderá não ser bem assim. Especialistas ouvidos pelo Politico alertam que o crescimento da dengue no ocidente, devido à migração do mosquito motivada pelas alterações climáticas, os medicamentos desenvolvidos serão mais dificilmente acessíveis para os países que mais precisam, já que as farmacêuticas deveriam desenvolver ferramentas menos eficazes nos territórios em questão, já que seriam os países mais ricos a acumular a maior fatia de vacinas e fármacos.

“Pode parecer uma coisa boa – e é uma coisa boa – que estejamos a desenvolver mais medicamentos, mas será que isso não cria um sistema de dois níveis, onde as populações de altos rendimentos têm acesso a isso e então ainda teremos mais uma lacuna de acesso para países de de baixos e médios rendimentos?”, questiona Lindsay Keir, consultora científica do grupo Policy Cures Research.

A dengue normalmente causa sintomas leves, mas pode também resultar em doença grave, com febres altas, dores de cabeça, vómitos, sangramento nas gengivas, forte dor abdominal e, em alguns casos, morte. Os mosquito, que já chegou a Portugal, está presente sobretudo no sul da Europa, no entanto é já uma preocupação generalizada no continente.

As doenças transmitidas por estes mosquitos, como a chikungunya e o zika são classificadas como doenças tropicais negligenciadas, um grupo de infeções que afeta principalmente países pobres. Até agora o investimento no estudo e desenvolvimento de vacinas e medicamentos estava estagnado mas, com a chegada do mosquito vetor destas doenças à Europa, em 2022 o financiamento em investigação relacionada coma dengue aumento em 335, para um máximo recorde de 28 milhões de dólares.

A J&J está a trabalhar num antiviral contra a dengue, a MSD tem uma vacina contra a doença a ser reparada e a Sanofi está a desenvolver uma nova vacina contra a febre amarela.. A Sanofi e a Takeda já têm vacinas contra a dengue aprovadas, e a Moderna adianta que está a analisar uma candidata contra a dengue, com uma vacina contra o zika já em desenvolvimento..

No entanto, Rachael Crockett, gestora na iniciativa sem fins lucrativos Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) aponta que este desenvolvimento será focado em produtos destinados às nações mais ricas. “A indústria irá, e o mais provável é que os governos também o façam, contentar-se na prevenção”.

Ou seja, as vacinas serão prioridade e foco, mas nos países onde a dengue é endémica, as estações de chuva e monções sobrecarregam os sistemas de saúde até à beira do colapso, pelo que “precisam desesperadamente de tratamentos”.

Por outro lado, antecipa-se um ‘açambarcamento’ dos países mais ricos, como se viu quanto ás vacinas da Covid, ou do Ébola. “Não temos nenhuma garantis de que não haverá acumulação, e que não haverá preços elevados nestas respostas”, lamenta a responsável, exemplificando que o maior stock de vacinas contra o Ébola existe nos EUA; apesar de não ter havido ainda nenhum surto naquele país.

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