Marrocos deu um passo significativo no reforço da sua influência em África ao receber, a 28 de abril, os ministros dos Negócios Estrangeiros do Mali, Níger e Burkina Faso. O encontro decorreu em Rabat, onde os representantes da Aliança dos Estados do Sahel (AES), todas elas ditaduras militares fortemente alinhadas com a Rússia de Vladimir Putin, agradeceram ao rei Mohamed VI a sua proposta para garantir “acesso ao Atlântico” aos países da região, todos eles sem saída para o mar.
Segundo avançaram os meios de comunicação malianos, a iniciativa visa criar um corredor terrestre que ligue os três países aos portos marroquinos, nomeadamente Tânger e Dakhla. Esta proposta, originalmente apresentada por Mohamed VI em 2023, surgiu num contexto de crescente isolamento diplomático da AES, após sucessivas rupturas com a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e com países vizinhos como a Argélia.
A proposta marroquina apresenta desafios logísticos imensos. A rota mais curta entre Niamey, capital do Níger, e Tânger tem cerca de 4.600 quilómetros, atravessando o inóspito deserto do Saara, zonas instáveis sob controlo de grupos jihadistas e áreas onde se registam conflitos com rebeldes independentistas. Para camiões vindos de Ouagadougou, no Burkina Faso, o trajeto seria ainda mais longo. Mesmo a opção de Dakhla, no disputado território do Saara Ocidental, reduziria pouco mais de mil quilómetros, mas levanta outras questões geopolíticas.
Taleb Alisalem, ativista saharaui e autor de Um viaje a la libertad, denunciou o projeto em declarações ao jornal El Español: “O mesmo Sankara que todos citam foi o primeiro em pisar o Saara Ocidental libertado pelo Polisário. Não é possível construir uma África livre enquanto se aplaude o opressor de um dos seus povos”. Para Alisalem, a colaboração com Marrocos representa “uma traição ao espírito do panafricanismo”.
A construção de infraestruturas essenciais, como estradas, pontes ou zonas de abastecimento, seria colossal e envolveria investimentos de milhares de milhões de euros. Tudo isto para atravessar territórios hostis ou controlados por forças insurgentes, violando inclusivamente, segundo os críticos, a soberania do povo saharaui.
Uma aliança paradoxal
A decisão de cooperar com Marrocos surpreende muitos analistas, tendo em conta o discurso anticolonialista das juntas militares do Sahel, que expulsaram tropas e diplomatas franceses e se alinharam com Moscovo. Marrocos, no entanto, continua a ser um dos principais aliados da França no Norte de África. A aliança, neste contexto, parece contraditória.
“O amigo do meu inimigo é meu amigo?”, questiona Alisalem. “Marrrocos não é um país neutro. É o instrumento regional da França que dizem ter expulsado. Aproximar-se dele, enquanto se silencia o povo saharaui, é incoerente e traiçoeiro”.
A relação histórica entre Marrocos e Mali remonta ao século XVI, quando o exército marroquino, liderado por Yuder Pachá — um eunuco espanhol convertido ao Islão — atravessou o Saara e destruiu o Império Songhai, então uma potência regional. Esta campanha culminou com o saque de cidades importantes e o início do declínio da zona que hoje corresponde ao Mali, Níger e Burkina Faso.
Para muitos críticos, a ironia é gritante: países que dizem lutar contra o colonialismo procuram agora alianças com um Estado que, segundo os historiadores, contribuiu para o colapso dos seus próprios impérios e continua a ocupar um território em disputa.
Alternativas ignoradas
Além dos obstáculos logísticos e políticos, a proposta marroquina ignora rotas comerciais mais diretas. Por exemplo, os portos de Dakar (Senegal), Conacri (Guiné-Conacri) ou Lomé (Togo) estão a distâncias muito mais curtas de Niamey — 2.600, 2.100 e 1.100 quilómetros respetivamente. Lomé está ainda a apenas 939 quilómetros da capital burkinabê, Ouagadougou.
“Porque complicar tanto?”, interrogam-se observadores regionais.
Até mesmo Alisalem, que outrora foi apoiante das juntas militares da AES, admite a sua deceção: “No início, acreditei que o que estava a acontecer no Sahel era o renascimento do verdadeiro panafricanismo. Mas agora vejo apenas oportunismo e negócios mal disfarçados”.
O precedente do gasoduto fantasma
Esta nova aliança entre Marrocos e a AES segue uma lógica já vista no projeto do gasoduto Nigéria-Marrocos, anunciado com grande entusiasmo em Rabat. Avaliado em cerca de 25 mil milhões de euros, o projeto prevê um gasoduto que percorre toda a costa ocidental africana até abastecer a Europa. Contudo, até agora, não passou do papel.
Mesmo Josep Borrell, alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, mostrou-se cético numa visita a Rabat em janeiro de 2023: “Temos de considerar quando estará concluído. Estaremos ainda a usar metano nessa altura?”
Apesar disso, o projeto já gerou dividendos. O Banco Islâmico de Desenvolvimento comprometeu-se com 90 milhões de dólares para estudos de viabilidade, enquanto a OPEP disponibilizou outros 14,3 milhões. São já 104 milhões investidos… sem uma única conduta construída.
No dia 28 de abril, quando os ministros da AES se encontraram com Mohamed VI, surgiram rumores — não verificados — de que o Níger teria abandonado o projeto do gasoduto via Argélia para apostar na rota marroquina, segundo contas associadas às juntas militares na rede X (antigo Twitter).
Negócios sem construção
Para que o corredor atlântico se torne realidade, seria necessário erguer milhares de quilómetros de estradas, vencer obstáculos geográficos, enfrentar milícias armadas e lidar com zonas onde a autoridade estatal é inexistente. Tudo isto enquanto se violam fronteiras disputadas, como no caso do Saara Ocidental.
Ainda assim, a ilusão do desenvolvimento basta para movimentar milhões. O exemplo de Burkina Faso é ilustrativo: em 2023, o governo anunciou que a estatal russa Rosatom construiria uma central nuclear no país, apesar dos constantes ataques terroristas. Não há qualquer avanço concreto desde então. Ainda assim, foi criada (e orçamentada) a Agência Burquinabé de Energia Nuclear. O que fazem os funcionários dessa agência? Mistério.
Tal como o gasoduto, também o projeto do corredor atlântico pode nunca sair do papel. Mas serve para garantir manchetes, financiamento internacional, contratos de consultoria e propaganda política.














