Uma investigação revelou que mais de 100 empresas ocidentais, incluindo gigantes da indústria aeroespacial como a Boeing, exportaram peças de aeronaves para a Índia, que posteriormente foram enviadas para a Rússia. Os dados analisados sugerem que, entre janeiro de 2023 e setembro de 2024, componentes avaliados em mais de 50 milhões de dólares chegaram a companhias aéreas russas e outras entidades através de intermediários indianos.
Ao longo de 21 meses, aproximadamente 700 carregamentos contendo peças essenciais, como geradores, sensores, hélices, ecrãs de cockpit, parafusos e filtros, foram enviados para a Índia antes de serem reexportados para a Rússia.
A maioria dos destinatários russos são companhias aéreas civis, incluindo a Utair, que a União Europeia (UE) identificou como também prestando serviços ao setor da defesa russo. A Utair recebeu cerca de um quarto de todos os carregamentos identificados.
Apesar da ligação das peças à Rússia, não há qualquer indicação de que as empresas ocidentais envolvidas tenham violado diretamente sanções ou tivessem conhecimento de que os seus produtos estavam a ser desviados para território russo através de intermediários indianos.
Desde o início da invasão da Ucrânia, o Reino Unido e a UE proibiram a venda direta de peças de aeronaves para companhias aéreas e empresas russas. Nos Estados Unidos, essas exportações estão sujeitas a restrições rigorosas. No entanto, os governos ocidentais têm enfrentado dificuldades em lidar com a proliferação de empresas intermediárias que ajudam a Rússia a obter bens e tecnologia fabricados no Ocidente.
Empresas britânicas identificadas nos envios
Entre as empresas britânicas envolvidas, destacam-se a Step Aviation e a ASL Aerospace, ambas associadas a carregamentos posteriormente enviados para a Rússia por intermediários indianos.
A Step Aviation, registada em nome de um cidadão letão, enviou mais de 60 carregamentos no valor de mais de 3 milhões de dólares para a empresa indiana Shaurya Aeronautics. Quase todos esses carregamentos acabaram por ser revendidos a três compradores na Rússia.
Em outubro de 2024, os Estados Unidos aplicaram sanções económicas à Shaurya Aeronautics, acusando-a de enviar peças sensíveis de dupla utilização para a Rússia, como parte de um esforço para “reduzir e degradar a capacidade da Rússia de equipar a sua máquina de guerra”. No entanto, nem o Reino Unido nem a UE sancionaram a empresa. Não há registo de que a Step Aviation tenha enviado mais produtos para a Shaurya Aeronautics após as sanções.
A segunda empresa britânica identificada, a ASL Aerospace, com sede em Devon, enviou cerca de 60 carregamentos do Reino Unido e dos EUA para quatro empresas indianas que depois reexportaram os produtos para a Rússia.
Os registos aduaneiros indicam que um desses carregamentos, enviado para a empresa indiana Agrim Aviation Private Ltd, chegou ao destino em setembro de 2024. No mês seguinte, os Estados Unidos adicionaram a Agrim à sua lista de entidades sancionadas, acusando-a de “provavelmente” desviar produtos fabricados nos EUA para a indústria da aviação russa.
O diretor executivo da ASL Aerospace, Bryan Poulier, afirmou que a empresa não quer ser “cúmplice no comércio de peças de aeronaves para a Rússia através de qualquer empresa sancionada”. Acrescentou ainda que a companhia adota medidas rigorosas para rastrear os seus produtos, incluindo “ferramentas de monitorização em tempo real” e a exigência de uma declaração de utilizador final (End User Statement, EUS) para cada venda, de forma a garantir conformidade com as regulamentações de exportação.
Boeing e Airbus envolvidas no comércio indireto
Os dados aduaneiros também indicam que a Boeing enviou pelo menos 80 carregamentos para a Índia desde 2023, que foram posteriormente reexportados, parcial ou totalmente, para a Rússia. Entre os produtos identificados estão fixadores, válvulas, vedantes de combustível e uma bateria.
Grande parte desses produtos passaram pela empresa indiana Ascend Aviation, que, em outubro de 2024, foi sancionada pelos Estados Unidos por ser parte de “redes de evasão de sanções”. Nem o Reino Unido nem a UE impuseram sanções à empresa até à data.
Um porta-voz da Boeing afirmou que, desde março de 2022, a empresa “suspendeu as principais operações na Rússia, incluindo o fornecimento de peças, manutenção e apoio técnico aos clientes”.
A subsidiária da Airbus, Satair, também foi identificada nos registos aduaneiros, tendo enviado 12 carregamentos para a mesma Ascend Aviation entre setembro de 2023 e maio de 2024. Posteriormente, todas essas remessas foram encaminhadas para compradores russos, incluindo a companhia estatal Aeroflot.
Um porta-voz da Airbus garantiu que a empresa e a Satair atuam “em conformidade com as leis e regulamentos” e estão “ativamente comprometidas na prevenção da evasão de sanções e do desvio de produtos”.
O governo indiano tem evitado condenar a invasão russa da Ucrânia e continua a manter uma relação próxima com Moscovo. Questionado sobre o envolvimento de empresas indianas no reencaminhamento de peças ocidentais para a Rússia, um porta-voz do governo indiano afirmou que não acredita que essas empresas estejam a violar a legislação local, mas que serão aconselhadas sobre os mais recentes controlos internacionais de exportação.
Enquanto isso, os governos ocidentais continuam a enfrentar dificuldades em travar redes de intermediários que facilitam a transferência de tecnologia e produtos críticos para a Rússia. O especialista em conformidade com sanções David Tannenbaum afirmou que os esforços ocidentais para restringir estas práticas têm sido comparáveis a um “jogo do gato e do rato”, com entidades sancionadas a serem rapidamente substituídas por novas empresas.














