Irlanda vai hoje às urnas com crise habitacional e imigração no centro do debate
A Irlanda prepara-se para eleições cruciais hoje, num cenário político marcado pelo descontentamento popular em relação às políticas de habitação, imigração e a perceção de falta de responsabilidade política. Este sentimento de insatisfação, que tem sido um tema recorrente em processos eleitorais globais este ano, ameaça transformar o equilíbrio de poder entre os partidos tradicionais que dominaram a política irlandesa durante décadas.
O tema central da campanha tem sido a crise habitacional. Os preços de imóveis na Irlanda registaram uma subida de 10% no ano até agosto, enquanto a escassez de habitações atingiu níveis alarmantes. Um relatório da comissão de habitação do governo estima um défice habitacional de 256 mil casas.
As rendas dispararam, colocando o sonho de ter uma casa própria fora do alcance de muitos jovens trabalhadores. Esta realidade tem forçado muitos na faixa dos 20 anos a emigrar, apesar de a economia irlandesa continuar a oferecer inúmeras oportunidades de emprego.
“Todos os partidos apresentam propostas para resolver a crise habitacional. No entanto, isso enfraqueceu a posição do Sinn Féin, que liderou este debate em 2020”, explicou Lisa Keenan, professora de ciência política da Universidade de Trinity, ao RFI.
Embora este tema e o custo de vida sejam as questões mais discutidas, nenhum dos principais partidos conseguiu destacar-se com propostas suficientemente diferenciadas.
Imigração em destaque
A imigração tem assumido um papel de relevo nesta campanha, num país tradicionalmente conhecido mais pela emigração do que pela receção de migrantes. Atualmente, cerca de 20% da população irlandesa é composta por pessoas nascidas fora do país, e 120 mil estrangeiros chegaram à Irlanda entre abril de 2023 e abril de 2024, o maior número desde 2007.
Entre os recém-chegados estão mais de 100 mil ucranianos e milhares de refugiados oriundos do Médio Oriente e de África. Contudo, o aumento das chegadas de imigrantes tem gerado tensões, com protestos contra os centros de acolhimento improvisados, como tendas e outras instalações temporárias, que se tornaram comuns devido à escassez de habitação.
Lisa Keenan destacou que o Sinn Féin enfrenta críticas de alguns dos seus apoiantes mais radicais, devido à sua política menos restritiva sobre imigração. Este descontentamento reflete-se nos resultados das sondagens, que apontam para uma queda na popularidade do partido.
Incidentes como o ataque a crianças numa escola em Dublin, no qual um homem argelino foi acusado, exacerbaram os sentimentos anti-imigração, gerando os piores tumultos vistos no país em décadas. Apesar disso, a Irlanda continua sem um partido de extrema-direita significativo, embora candidatos independentes anti-imigração estejam a concorrer em vários distritos.
Vantagem financeira e o papel do governo
A Irlanda beneficia de uma posição financeira favorável, graças a receitas como os mais de 13 mil milhões de euros em impostos atrasados que a Apple foi obrigada a pagar pela União Europeia. Apesar de inicialmente ter resistido a esse pagamento, o governo irlandês usa agora parte desses fundos para enfrentar desafios económicos e sociais.
Simon Harris, atual primeiro-ministro e líder do Fine Gael, sublinhou que o partido está a “reservar uma quantia significativa em fundos futuros para proteger o país de choques económicos”. Contudo, a sua campanha tem sido prejudicada por momentos embaraçosos, como uma interação brusca com uma assistente de cuidados a pessoas com deficiência, que se tornou viral.
Enquanto isso, o líder do Fianna Fáil e vice-primeiro-ministro, Micheál Martin, tem mantido uma postura confiante. Martin argumenta que o governo de coligação conseguiu superar desafios como a pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia, afirmando que “a economia irlandesa recuperou”.
O papel do Sinn Féin e cenários pós-eleitorais
O Sinn Féin, que ganhou destaque em 2020 ao vencer o voto popular, continua a enfrentar dificuldades em formar uma coligação devido à recusa do Fine Gael e do Fianna Fáil em trabalhar com o partido, citando as suas políticas de esquerda e ligações históricas ao Exército Republicano Irlandês (IRA).
Apesar de as sondagens mostrarem alguma recuperação do Sinn Féin nas últimas semanas, o partido enfrenta barreiras significativas para alcançar o poder, uma vez que carece de aliados políticos dispostos a formar coligação.
Analistas apontam para a probabilidade de uma renovação da coligação entre Fine Gael e Fianna Fáil como o desfecho mais provável das eleições, enquanto a distribuição de votos parece dividir-se quase equitativamente entre os principais partidos, forças menores e candidatos independentes.
Com 174 lugares em disputa na Dáil, a câmara baixa do Parlamento irlandês, os eleitores decidirão hoje não apenas o rumo do governo, mas também o futuro de questões cruciais como habitação e imigração num país em rápida transformação.