Um novo ensaio clínico pioneiro irá testar a utilização de fígados de porco geneticamente modificados para filtrar o sangue de pacientes com falência hepática aguda, numa tentativa de permitir que os seus próprios órgãos tenham tempo para se regenerar. A investigação, liderada pela empresa norte-americana eGenesis em parceria com a britânica OrganOx, foi recentemente aprovada pela FDA – a agência reguladora de medicamentos e alimentos dos Estados Unidos – e deverá arrancar ainda durante a primavera.
Fígado de porco como “ponte” para recuperação humana
Ao contrário dos habituais transplantes de fígado – um procedimento complexo e com recursos limitados – este estudo não envolve a substituição do órgão humano por um fígado de porco. Em vez disso, os fígados de suínos geneticamente modificados serão ligados externamente aos pacientes, desempenhando temporariamente funções de filtragem do sangue, à semelhança do que acontece com uma diálise renal.
“A ideia é criar uma ponte terapêutica. O fígado humano tem uma capacidade única de regeneração, mas precisa de tempo. A esperança é que este apoio temporário, durante dois ou três dias, permita ao órgão humano recuperar a sua função”, explicou Mike Curtis, diretor executivo da eGenesis, citado pela Associated Press.
O dispositivo utilizado para este processo é da autoria da OrganOx, empresa britânica que já desenvolve sistemas de preservação de fígados humanos destinados a transplante. O equipamento fará circular o sangue dos doentes através do fígado de porco, mantendo o fluxo contínuo fora do corpo.
Um passo arrojado na luta contra a falência hepática
A falência hepática aguda é uma condição rara, mas devastadora, que pode surgir mesmo em pessoas previamente saudáveis. A taxa de mortalidade pode atingir os 50%, e em muitos casos o transplante não é viável – seja por falta de compatibilidade, de tempo ou de acesso ao procedimento.
Segundo dados de 2021, divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a cirrose e outras doenças hepáticas crónicas provocaram quase 86 mil mortes na União Europeia nesse ano. Nos Estados Unidos, estima-se que mais de 66 mil pessoas morrem anualmente devido a problemas do fígado.
Mike Curtis salientou que este novo ensaio clínico irá envolver até 20 doentes internados em unidades de cuidados intensivos, que já não sejam elegíveis para transplante hepático. A decisão de avançar baseia-se nos resultados promissores obtidos em testes prévios realizados com quatro corpos humanos recentemente falecidos, nos quais o fígado suíno demonstrou ser capaz de desempenhar funções hepáticas durante dois a três dias.
A empresa eGenesis é conhecida por desenvolver suínos geneticamente modificados, eliminando genes que poderiam desencadear rejeições imunológicas em humanos e inserindo genes humanos que ajudam na compatibilidade. Estes avanços são parte de um esforço crescente na área dos xenotransplantes – o uso de órgãos de animais em humanos –, que procura dar resposta à escassez global de órgãos para transplante.
A ideia de usar órgãos de porco não é nova, mas as tecnologias de edição genética mais recentes, como o CRISPR, permitiram avanços significativos na adaptação biológica dos órgãos destes animais para uso humano. A aprovação deste ensaio clínico marca uma nova etapa nesse caminho, ao propor não um transplante definitivo, mas uma solução intermédia e potencialmente salvadora.
O ensaio deverá iniciar-se nos próximos meses, sob supervisão rigorosa. A FDA exige que todos os testes com órgãos de origem animal cumpram exigentes protocolos de segurança, nomeadamente para prevenir possíveis transmissões de doenças entre espécies.
Este estudo poderá não só abrir portas para novas formas de tratamento da falência hepática, como também fornecer dados valiosos sobre a viabilidade funcional dos órgãos de porco modificados – uma área que continua a despertar grande interesse na medicina regenerativa.
Para milhares de doentes à espera de um fígado compatível, ou para aqueles cujos órgãos ainda possam recuperar, esta abordagem inovadora poderá vir a representar uma nova esperança. Como sublinhou Curtis, “é uma tentativa de dar tempo ao fígado humano para se regenerar — e ao doente, uma hipótese de sobrevivência”.














