Como consertar a democracia? Resposta pode estar num livro com mais de dois milénios

‘A República’, a obra mais conhecida do antigo filósofo grego Platão, escrita por volta de 375 a.C., moldou o pensamento político ocidental. A Grécia antiga é conhecida como o “berço da democracia” – não só a primeira democracia do mundo foi em Atenas, como a própria palavra vem do grego “demos” (povo) e “kratos” (governo).

No entanto, explicou Matthew Duncombe, professor associado em Filosofia, da Universidade de Notthingham (Reino Unido), ‘A República’ é um argumento incansável contra a democracia. O que pode ser surpreendente, uma vez que os ocidentais pensam normalmente que é muito importante viver em democracia – afinal, quase todos os países do Ocidente são democráticos.

Então, o que pretendeu Platão? E poderá estar aí a chave para compreender os motivos, em todo o Ocidente, que têm feito diminuir a confiança na democracia?

Os argumentos apresentados por Platão são proferidos pelo filósofo Sócrates, o seu professor e mentor. Porém, o sistema rejeitado – a democracia ateniense dos séculos V e IV a.C. – difere significativamente da democracia contemporânea. Por exemplo, em Atenas, apenas os cidadãos do sexo masculino podiam votar leis e eleger autoridades. As mulheres, os escravizados e os estrangeiros não tinham voz, embora constituíssem a maior parte da população. A democracia ateniense podia ser selvagem. Todos os anos, os cidadãos podiam votar pelo exílio de alguém da cidade durante 10 anos, e o regime democrático tomava decisões terríveis, como a execução do próprio Sócrates ou ordenar massacres públicos.

No entanto, Sócrates não se debruça sobre as injustiças da democracia ateniense. O seu argumento é mais simples e geral. Governar é um ofício especializado. E como qualquer outro ofício, nem toda a gente tem o talento ou a formação para ser boa.

Imagine-se: os passageiros a embarcar num avião e a ter uma eleição sobre qual deles pilotaria. Qualquer piloto qualificado e experiente no voo em questão poderia argumentar que deveria assumir o comando. No entanto, e se não conseguisse defender a sua posição, por qualquer motivo?

Esta analogia, continuou o especialista, adaptada a uma semelhante em ‘A República’, parece dizer que a democracia não garante líderes qualificados para governar. Mas outros sistemas também não. Um país pode ter sorte e ter um responsável com algum talento para governar, na mesma probabilidade de ter um ditador brutal e incompetente.

Sócrates necessitou de um argumento mais bem conseguido contra a democracia, que surgiram nos livros II-IV de ‘A República’: neles, o filósofo apontou que governar é um ofício qualificado que falta à maioria das pessoas. Só aqueles qualificados no comércio deveriam governar. Mas numa democracia, a maioria governa, logo não deveríamos ter uma democracia.

Esta versão do argumento parece funcionar contra as democracias em geral, não apenas a versão ateniense e não apenas as versões modernas. Tal como acontece com pilotar um avião, também acontece com governar um país. Tal como gostaríamos que fossem os pilotos qualificados, e não a maioria, a pilotar o avião, queremos que os governantes qualificados, e não a maioria, governem os nossos países.

Argumentos de Sócrates têm ‘buracos’

Existem três problemas óbvios. Em primeiro lugar, será que governar é realmente uma competência como pilotar um avião? A resposta de Platão, de que governar hábil envolve essencialmente o conhecimento daquilo a que se referiu como “aquilo que é verdadeiramente bom”, não parece muito convincente.

Em segundo lugar, mesmo que governar seja uma competência, isso não significa que a maioria das pessoas não tenha essa competência. Existem muitos governantes qualificados que tomam decisões em todas as esferas da vida, não apenas na política. Na verdade, poderíamos pensar que as decisões coletivas podem ser mais hábeis, porque é menos provável que reflitam o conhecimento, a experiência ou os preconceitos de um pequeno grupo.

Em terceiro lugar, mesmo que governar seja um ofício qualificado e que a maioria das pessoas não possua esta competência, há razões para incluir aqueles que não têm competência na tomada de decisões políticas. Talvez possamos treiná-los nessa competência incluindo-os. Talvez seja simplesmente mais justo incluir todas ou a maioria das pessoas na tomada de decisões, e a justiça pode ser mais importante do que obter sempre a “melhor” decisão.

Embora Sócrates tenha razão ao dizer que as democracias por vezes entregam governantes não qualificados que tomam decisões erradas, até mesmo perversas, isso não significa que se deva rejeitar a democracia.

Aceitando-se as conclusões de Sócrates – apenas os qualificados em político devem governar e a maioria não é qualificada -, a democracia pode ser preservada nutrindo as competências políticas de todos, tirar o melhor partido dos talentos e experiência de todos, lembrando ao mesmo tempo que é justo que as pessoas tenham uma palavra a dizer nas decisões que as afetam.