O avanço dos drones na guerra da Ucrânia está a transformar por completo a medicina militar. O tenente-coronel Roman Kuzic, responsável pelas forças médicas no leste do país, acompanha em tempo real as estatísticas que lhe chegam do terreno e confirma uma mudança radical: 98% dos feridos chegam atingidos por estilhaços, enquanto os ferimentos de bala representam apenas 1,9% dos casos, salientou esta terça-feira o jornal ‘El Mundo’.
O impacto desta nova realidade é profundo, desde os tempos de evacuação até ao próprio uso de torniquetes, cuja aplicação prolongada se tornou comum devido à dificuldade de retirar soldados da zona de perigo, agora permanentemente exposta a ataques aéreos não tripulados.
Segundo o oficial, a doutrina da NATO assenta na chamada “hora de ouro”, o período ideal de evacuação. Na Ucrânia, porém, esse intervalo estende-se frequentemente para cinco ou seis horas. Como consequência, muitos militares permanecem demasiado tempo com o torniquete colocado, ultrapassando largamente as recomendações tradicionais.
Os médicos ucranianos passaram a defender uma aplicação mais restritiva do torniquete, complementando-o, quando possível, com técnicas menos agressivas de controlo de hemorragias, como gazes hemostáticas ou ligaduras israelitas. Mesmo assim, o uso excessivo deste método contribuiu para um número muito elevado de amputações entre as tropas ucranianas — estimado entre 30 mil e 100 mil militares, segundo várias organizações e instituições do país.
Proteção individual desajustada à ameaça dos drones
A predominância de estilhaços e explosões coloca igualmente em causa a eficácia do equipamento de proteção padrão. Kuzic aponta que muitos drones detonam ao nível da cabeça, causando lesões graves nos ouvidos, pescoço e rosto. Cerca de 20% dos feridos apresentam danos no tímpano e outros 20% lesões na cabeça e pescoço, levando o oficial a defender a necessidade de rever o design dos capacetes, que deveriam oferecer maior cobertura facial.
Ucrânia alerta NATO para táticas desatualizadas
As forças armadas ucranianas têm alertado os seus parceiros da NATO para o desfasamento entre o treino fornecido e as exigências da guerra moderna. Valerii Zaluzhnyi, antigo chefe do Exército ucraniano e atual embaixador em Londres, afirmou que a aliança atlântica se tornou “obsoleta”, sublinhando que o conflito atual requer novas doutrinas, organizações e planos de defesa.
Especialistas do Instituto de Guerra Moderna de West Point reforçam esse diagnóstico, avisando que a NATO corre o risco de treinar militares ucranianos para “batalhas idealizadas”, ignorando uma guerra que hoje é dominada pelo desgaste e pelos sistemas aéreos não tripulados.
Hospitais subterrâneos e novos veículos para evacuação
Perto da linha da frente, a infraestrutura médica também se adapta à ameaça constante dos drones. Muitos pontos de estabilização foram deslocados para instalações subterrâneas, alguns com mais de 300 metros quadrados, equipados com salas de operações e unidades de cuidados intensivos.
Ao mesmo tempo, o tradicional uso de ambulâncias tornou-se arriscado, levando à introdução de macas robotizadas e do dispositivo Maul, um veículo blindado baseado no chassis de uma moto de quatro rodas, capaz de transportar feridos em condições extremas. Um destes robots percorreu 64 quilómetros numa operação recente, resistindo a explosões, minas e ataques sucessivos para resgatar um soldado que aguardava evacuação há 33 dias.
A presença permanente de drones no campo de batalha originou uma nova forma de stress pós-traumático: a “fobia de drones”. Soldados que operam ou enfrentam estes dispositivos relatam ansiedade, insónias e reações de pânico perante ruídos banais, como eletrodomésticos ou ferramentas.
No Hospital Militar de Kiev, a equipa chefiada por Andree Chaikovsky trata cada vez mais casos deste tipo e já está a testar terapias com realidade virtual, simulando cenários com drones para monitorizar reações e ajudar na dessensibilização.
Formação médica reforçada e adaptação contínua
As mudanças no terreno também levaram ao reforço da formação médica dos próprios soldados, que passou de oito para até 36 horas. Vários casos extremos demonstram como os atrasos prolongados na evacuação podem complicar ferimentos, incluindo situações em que infeções extensas foram controladas apenas pela ação de larvas, permitindo evitar amputações completas.
Para Kuzic e para muitos oficiais ucranianos, a realidade da guerra atual exige uma revisão profunda dos protocolos militares internacionais. A experiência ucraniana, marcada pela omnipresença dos drones e por uma violência fragmentada, está a transformar-se numa referência que desafia doutrinas estabelecidas e obriga à reconfiguração da estratégia defensiva europeia.














