Alimentação é maior ameaça ao clima e a Europa está a ficar para trás nas medidas urgentes, alerta estudo

Mesmo que o mundo deixasse hoje de consumir carvão, petróleo e gás, a forma como nos alimentamos seria suficiente para ultrapassar os limites climáticos definidos pelo Acordo de Paris, adverte a Comissão EAT-Lancet. Este painel científico internacional, composto por mais de 70 especialistas de seis continentes, publicou esta sexta-feira o estudo mais abrangente até hoje sobre o impacto dos sistemas alimentares no planeta.

Pedro Gonçalves
Outubro 3, 2025
13:24

Mesmo que o mundo deixasse hoje de consumir carvão, petróleo e gás, a forma como nos alimentamos seria suficiente para ultrapassar os limites climáticos definidos pelo Acordo de Paris, adverte a Comissão EAT-Lancet. Este painel científico internacional, composto por mais de 70 especialistas de seis continentes, publicou esta sexta-feira o estudo mais abrangente até hoje sobre o impacto dos sistemas alimentares no planeta.

Segundo o relatório, quase um terço das emissões globais de gases com efeito de estufa provêm da produção alimentar — incluindo o metano emitido pelo gado, a desflorestação para produção de ração animal e a energia fóssil usada na fabricação de fertilizantes.

Mas os danos vão muito além das emissões. Os sistemas alimentares representam a principal causa do excesso de exploração dos “limites planetários”, o conceito científico que define as margens seguras para a humanidade. Entre outros impactos referidos estão a perda de biodiversidade, a degradação dos solos, a escassez de água e a poluição por fertilizantes.

“Os resultados são preocupantes. A alimentação por si só poderia levar-nos além de 1,5°C — mas também pode ajudar-nos a reverter o curso,” afirmou Johan Rockström, cientista sueco e copresidente do painel, criador do conceito dos limites planetários, citado pelo Político.

O estudo reforça que ainda é possível alimentar cerca de 10 mil milhões de pessoas com uma dieta saudável dentro dos limites ecológicos do planeta — algo que os atuais sistemas alimentares não conseguem alcançar, mesmo com a população atual.

A “dieta da saúde planetária” proposta pelos autores privilegia frutas, vegetais, leguminosas e frutos secos, com consumo moderado de laticínios, aves e peixe, e redução significativa de carne vermelha e processada. Seguir este padrão poderia prevenir até 15 milhões de mortes prematuras por ano e reduzir para mais de metade as emissões relacionadas com a alimentação.

O custo anual estimado desta transformação situa-se entre 200 e 500 mil milhões de dólares — muito inferior aos biliões em poupanças previstas em saúde pública e ambiente, segundo os investigadores.

Walter Willett, epidemiologista de Harvard e também copresidente do painel, sublinha que a proposta não pretende impor “um estilo de vida quase vegano”. “A dieta pode ser adaptada às tradições locais — da dieta mediterrânica à asiática — mas a direção é clara: mais plantas, menos carne e açúcar”, afirmou.

Da promessa europeia ao recuo político
O relatório evidencia que a Europa está a recuar face a compromissos anteriores. Em 2019, a primeira versão do estudo EAT-Lancet influenciou diretamente a Estratégia “Farm to Fork” da União Europeia, lançada em 2020 como parte do Pacto Ecológico Europeu, sob a presidência de Ursula von der Leyen. O plano visava tornar o sistema alimentar europeu “justo, saudável e ambientalmente sustentável”, prometendo reduzir pesticidas e fertilizantes, expandir a agricultura biológica e promover dietas mais saudáveis.

Cinco anos depois, essa estratégia encontra-se praticamente abandonada. Perante protestos agrícolas, forte pressão da indústria e o impacto político da guerra da Rússia na Ucrânia, Bruxelas optou por deixar cair as reformas mais ambiciosas. O debate voltou a centrar-se em questões tradicionais como o nível de subsídios agrícolas, a gestão das importações da Ucrânia e da América Latina e a resposta às tensões com agricultores em França, Alemanha e Polónia.

Os próprios cientistas da UE alertam que a agricultura é a principal causa da perda de biodiversidade e degradação dos solos e da água.

Apesar do recuo europeu, o continente continua a ser um dos maiores responsáveis pelo impacto ambiental dos sistemas alimentares. O relatório salienta que os 30% mais ricos da população global geram mais de 70% dessas pressões.

Willett alerta ainda que, se economias em rápido crescimento adotarem dietas com elevado consumo de carne ao estilo ocidental, “isso será um caminho para o desastre ambiental e de saúde”. Estas regiões são também vistas pela indústria pecuária como os principais mercados em crescimento — uma realidade comercial que pode consolidar mais emissões e degradação ecológica justamente quando os cientistas defendem uma curva descendente urgente.

O painel destaca que a alimentação não é apenas um problema, mas uma oportunidade. Alterações rápidas nos padrões alimentares, na produção agrícola e na redução do desperdício poderiam gerar cerca de 5 biliões de dólares anuais em benefícios para a saúde e o ambiente.

“A alimentação está no centro do bem-estar humano e da saúde planetária. A transformação deve ir além de produzir calorias suficientes. Deve garantir o direito à alimentação, trabalho justo e um ambiente saudável para todos”, sublinhou Shakuntala Thilsted, co-presidente do painel.

O alerta da Comissão EAT-Lancet reforça a urgência de repensar sistemas alimentares e políticas, numa altura em que o recuo europeu contrasta com a crescente evidência científica sobre a relação entre alimentação, saúde e limites planetários.

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