Supremo iliba juíza que aceitou aquecedores e vales para tribunais: “conduta menos prudente”, mas sem crime

STJ recusa levar a julgamento Amélia Catarino, ex-presidente da Comarca de Lisboa, que autorizou filmagens em tribunais em troca de bens avaliados em 12.800 euros. Supremo reconhece “vazio legal” e afasta acusação de abuso de poder.

Executive Digest
Julho 29, 2025
14:35

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu arquivar o processo contra a juíza desembargadora Amélia Catarino, antiga presidente da Comarca de Lisboa, considerando que não há fundamentos legais para a levar a julgamento. A magistrada era suspeita de ter autorizado a cedência de instalações judiciais para filmagens, entre 2014 e 2018, em troca de bens e vales-oferta no valor de 12.883,54 euros. A decisão, datada de 9 de julho, confirma a anterior não pronúncia e rejeita o recurso interposto pelo Ministério Público (MP).

A investigação, segundo a CNN Portugal, centrou-se em diversos episódios em que tribunais foram utilizados para gravações de novelas e campanhas publicitárias, num contexto em que os serviços judiciais, segundo a própria juíza, careciam de condições básicas. Em troca dessas autorizações, foram entregues aos tribunais material de escritório (toners, resmas de papel), frigoríficos, um micro-ondas, oito aparelhos de ar condicionado, dez aquecedores, uma máquina de café e vales-oferta, um dos quais utilizado para a compra de vestuário formal para o motorista do tribunal, que, segundo Catarino, se sentia “constrangido” por não ter roupa adequada para deslocações protocolares.

O Ministério Público defendia que a magistrada não detinha competência legal para permitir o uso de imóveis do Estado, atribuição que seria exclusiva do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ). Considerava, por isso, que ao aceitar as “contrapartidas” teria agido com a intenção de proporcionar um benefício ilegítimo, ainda que não para si própria, o que configuraria o crime de abuso de poder.

Contudo, a defesa de Amélia Catarino sustentou que à época não existia uma regulamentação clara sobre quem detinha a competência para autorizar essas cedências. Argumentou ainda que, na sua qualidade de Presidente da Comarca, atuou com transparência, com registo formal das autorizações e conhecimento do Conselho de Gestão, e que nenhum dos bens recebidos teve uso pessoal, tendo todos sido integrados no património dos serviços judiciais.

“O crime de abuso de poder exige dolo específico e a intenção de beneficiar ilegitimamente alguém ou causar prejuízo. Não existindo esse dolo, nem benefício, nem prejuízo, não há crime”, afirmou a defesa da magistrada no requerimento de instrução.

O Supremo acolheu esta argumentação e foi perentório na fundamentação da decisão:

“Só se mostra justificável sujeitar alguém a julgamento quando os vestígios colhidos indicam, numa perspetiva isenta, que o arguido está mais perto de uma condenação do que da absolvição”, pode ler-se no acórdão.

O tribunal reconhece que houve uma atuação “menos prudente, simplista ou facilitadora” da parte da magistrada, mas considera que isso não é suficiente para constituir um ilícito criminal. Sublinha que os bens foram usados exclusivamente no funcionamento dos tribunais, constando dos inventários oficiais da Comarca, e que não houve qualquer apropriação pessoal.

No que diz respeito aos valores monetários pagos a funcionários judiciais pelo acompanhamento das filmagens, o STJ afastou a ideia de que tenham sido negociados pela juíza ou que tivessem sido impostos como condição para a autorização dos espaços.

“Nas autorizações deferidas pela arguida, nunca foi estabelecido como condição ou troca direta e obrigatória (…) qualquer compensação, nem foi esta indicada como sendo legalmente devida”, refere o acórdão.

O STJ destacou ainda a falta de regulamentação existente na altura. Só em 2021 foi aprovado um regulamento específico que define as regras de cedência de instalações judiciais, o que, segundo os juízes, reforça o argumento de que a atuação da magistrada ocorreu num contexto de indefinição legal.

Apesar de afastar responsabilidades criminais, o Supremo não deixou de criticar a forma como todo o processo foi gerido, sublinhando que a magistrada deveria ter adotado uma postura mais formal e rigorosa:

“O bom senso aconselharia a que tivesse sido adotada uma conduta mais cautelosa, prudente e estrita na aceitação destes bens, fosse a que título fosse”, conclui o acórdão.

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