A Assembleia da República aprovou na generalidade, na passada sexta-feira, várias propostas legislativas que alteram a natureza jurídica do crime de violação, que deixará de ser semipúblico e passará a ser considerado crime público. Esta mudança, há muito debatida, aproxima Portugal da maioria dos países europeus e segue as recomendações da Convenção de Istambul, ratificada por quase 40 Estados do Conselho da Europa.
A medida foi aprovada com os votos favoráveis de PSD, Chega, Iniciativa Liberal, Livre, CDS-PP, Bloco de Esquerda, PAN, Juntos pelo Povo (JPP) e de 12 deputados do PS, entre os quais o ex-secretário-geral Pedro Nuno Santos. Os grupos parlamentares do PS e do PCP optaram pela abstenção. A legislação segue agora para discussão na especialidade, onde os detalhes técnicos e legais serão definidos antes da aprovação final.
O que significa a violação passar a ser crime público?
Atualmente, a violação é considerada um crime semipúblico. Isto significa que o Ministério Público só pode abrir uma investigação se existir uma queixa formal da vítima. Com a alteração agora aprovada na generalidade, a violação passa a ser um crime público, o que permite a abertura de um inquérito com base em denúncias de terceiros, como testemunhas ou profissionais de saúde.
Esta mudança vai permitir mais investigações?
Em teoria, sim. O facto de a investigação já não depender exclusivamente da vontade da vítima pode facilitar o apuramento de mais casos. No entanto, esta alteração não gera consenso. Há quem argumente que esta abordagem pode desrespeitar a vontade das vítimas e levá-las a reviver traumas, mesmo quando prefeririam não avançar com queixa.
Apesar disso, Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda e autora de um dos projetos aprovados, defende que a nova tipificação legal não obriga a vítima a participar na investigação. “Nenhuma vítima será forçada a cooperar com o processo”, sublinhou, citando o modelo já existente em casos de violência doméstica.
Porque é que alguns partidos se abstiveram?
A principal objeção prende-se com a proteção da vítima. Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, explicou num vídeo divulgado após a votação que a transformação automática da violação em crime público “deixa a participação da vítima de fora”. Segundo o socialista, “o Ministério Público deixa de auscultar a vítima para prosseguir”. Acrescentou ainda que “não podemos deixar a vítima, que sofreu um crime horrível, de fora do processo penal”.
Brilhante Dias defendeu que é necessário “ir mais longe” na relação entre o Ministério Público e a vítima e alertou para a necessidade de um trabalho mais cuidado na discussão na especialidade.
Em que ponto está o processo legislativo?
Os projetos de lei aprovados ainda terão de ser discutidos na especialidade, em sede de comissão parlamentar, antes da votação final global. A nova lei implicará alterações ao Código Penal, ao Código de Processo Penal e ao Estatuto da Vítima.
Foram aprovadas várias iniciativas com o mesmo objetivo, entre elas propostas do Bloco de Esquerda, do PAN, do Livre e do Chega. Um outro diploma do PAN, que propunha o alargamento do prazo de prescrição para crimes de violação, foi, no entanto, rejeitado.
Como é que outros países tratam o crime de violação?
Portugal era, até agora, um dos poucos países europeus onde o crime de violação não tinha natureza pública. Esta exceção contrariava a Convenção de Istambul, um tratado internacional do Conselho da Europa destinado a combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica, ratificado por Portugal em 2013.
A vítima será obrigada a participar no processo, mesmo que não queira?
Segundo os proponentes da mudança, nomeadamente o Bloco de Esquerda, a resposta é não. Nenhuma vítima será forçada a prestar declarações ou a participar ativamente na investigação. Esta posição baseia-se no regime já em vigor noutros crimes públicos, como a violência doméstica, onde a vítima pode recusar colaborar com a justiça, embora o Ministério Público possa prosseguir com a investigação.
O crime de abuso sexual de menores é também um crime público?
Sim. Tal como a violação passará a ser, o abuso de menores já é considerado um crime público. Esta classificação é justificada pela especial vulnerabilidade das vítimas, que muitas vezes não têm capacidade legal ou emocional para apresentar queixa. Nestes casos, a proteção da vítima está prevista através de procedimentos específicos, como o depoimento em ambiente seguro e com apoio especializado.
Que outros crimes continuam a ser classificados como semipúblicos?
Apesar da mudança agora aprovada, continuam a existir diversos crimes cuja investigação depende da queixa da vítima. Entre eles estão as ameaças, a violação de domicílio, o furto simples, o abuso de confiança simples, o dano simples e a burla simples. Nestes casos, o Ministério Público só atua após a apresentação de uma queixa formal.














