Há mais de 794 mil estrangeiros a residir em Portugal inscritos no SNS

Portugal registou, até outubro, 794.563 estrangeiros inscritos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), de acordo com os dados da Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) fornecidos ao Diário de Notícias (DN). Este número representa um aumento de 223.329 novos registos desde 2019, resultado de um aumento significativo entre 2020 e 2023, impulsionado pela pandemia de covid-19. Segundo o Dr. Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), “muitas pessoas já viviam há muito em Portugal, mas com a pandemia inscreveram-se nos centros de saúde para continuarem a ser acompanhadas”.

Contudo, o total de autorizações de residência emitidas até setembro deste ano é de 1.044.606, segundo o relatório da Agência para a Imigração e Mobilidade (AIMA), o que significa que cerca de 200 mil residentes estrangeiros ainda não estão inscritos no SNS.

O SNS conta com utentes de mais de 200 regiões do mundo, com destaque para as nacionalidades brasileira, angolana, cabo-verdiana, indiana, britânica, italiana, ucraniana, nepalesa e guineense. Em termos de distribuição geográfica, a região de Lisboa e Vale do Tejo concentra o maior número de estrangeiros inscritos, seguida pelo Norte, Centro, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores.

Embora o número de estrangeiros inscritos continue a aumentar na maioria das regiões, Lisboa e Vale do Tejo e o Algarve mostram uma tendência contrária, com uma diminuição de 46.743 e 3.056 utentes, respetivamente. Segundo a ACSS, esta redução é resultado de uma “atualização dos registos dos utentes inscritos nos Cuidados Primários de Saúde (CPS)” que começou em junho de 2023, onde, nos casos em que se verifica que o utente já não reside em Portugal, as unidades encerram a inscrição conforme estipulado pelo Despacho n.º 1668/2023.

Apesar dos quase 795 mil cidadãos estrangeiros inscritos, Portugal enfrenta um desafio crítico: cerca de 1,7 milhões de utentes no SNS não têm médico de família, o que representa 16% do total de utentes. Esta carência é uma preocupação não só para os utentes estrangeiros, mas para toda a população nacional. “O serviço público não está a conseguir responder ao aumento da procura. Isto é um facto e um desafio muito grande, sobretudo para as zonas com maior carência em médicos de família”, destaca Nuno Jacinto.

Obstáculos culturais e de comunicação

Para além da escassez de médicos de família, a integração de estrangeiros no sistema de saúde português apresenta ainda desafios relacionados com barreiras linguísticas e culturais. Para responder a estes desafios, as unidades de saúde com maior número de utentes estrangeiros começaram a recorrer a tradutores e a tecnologias de tradução. “Agora, os próprios profissionais já têm instaladas aplicações de tradução nos seus dispositivos”, revela o Dr. Jacinto.

A adaptação clínica é também necessária devido a diferenças genéticas e culturais que afetam a saúde dos utentes. Segundo o presidente da APMGF, há populações com maior tendência para determinadas doenças, como colesterol elevado ou diabetes, que requerem um acompanhamento diferenciado. “É preciso ajustar os conselhos e as terapêuticas às particularidades destes utentes”, explica Jacinto, acrescentando que, no caso dos estrangeiros africanos e asiáticos, os profissionais de saúde devem adaptar as recomendações nutricionais, pois uma dieta mediterrânica pode não ser adequada para todos.

Consultas delicadas e barreiras culturais

O acompanhamento médico torna-se particularmente desafiante em consultas de planeamento familiar, onde algumas mulheres estrangeiras, por questões culturais e religiosas, resistem a realizar exames preventivos, como rastreios ao cancro da mama ou do colo do útero. Jacinto reconhece que “é difícil convencê-las a fazer exames de diagnóstico” e que, em alguns casos, o acompanhamento da gravidez é sensível, especialmente se houver interação entre profissionais e utentes de sexos opostos.

Para o presidente da APMGF, é essencial que tanto os utentes estrangeiros quanto os profissionais de saúde façam um esforço de adaptação mútua para que o tratamento seja bem-sucedido. “É importante que possamos conhecer cada vez melhor estas realidades para que a nossa mensagem chegue a estas pessoas”, conclui.

Custos e acesso a cuidados de saúde

O aumento de utentes estrangeiros, por si só, não é um problema financeiro para o SNS, segundo Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH). Barreto explica que o custo dos cuidados de saúde em Portugal é calculado com base em patologias e atos clínicos e não por nacionalidades. Para ele, o principal desafio é garantir que o SNS consiga atender adequadamente todos os utentes, independentemente da sua origem, num contexto em que a falta de profissionais agrava a pressão sobre os serviços.

Contudo, o administrador alerta para um outro fenómeno: o número de estrangeiros que viajam até Portugal para aceder a cuidados de saúde. “Temos pessoas que chegam aos nossos aeroportos e vão diretas a um Serviço de Urgência para serem tratadas. Do ponto de vista ético e humano, não é possível recusar cuidados urgentes”, afirma Barreto, acrescentando que, após o tratamento, o SNS enfrenta dificuldades em cobrar os custos desses cuidados, especialmente se os pacientes já tiverem deixado o país.

Barreto sublinha que este é um tema de debate frequente, sugerindo que um esforço coordenado entre o Estado português e as embaixadas dos países em questão poderia ajudar a resolver estas situações e garantir que os custos sejam cobertos. No entanto, reconhece que é um problema persistente em áreas específicas como maternidade e oncologia, e que a pressão sobre o sistema de saúde só tende a aumentar.

O presidente da APAH afirma que o aumento da procura no SNS é inegável e que a escassez de profissionais e a falta de investimento são os maiores entraves à capacidade de resposta do sistema. Barreto conclui que o investimento no SNS precisa de ser reforçado, tendo em conta não só o aumento do número de utentes estrangeiros, mas também o crescimento da população em geral, de modo a garantir um serviço de qualidade para todos.