Que impacto terá o programa fiscal acordado pelos líderes europeus? Futuro pede cautelas
Já no rescaldo das intensas negociações dos líderes da União Europeia (EU), nas quais selaram finalmente o acordo relativo ao novo Fundo de Recuperação (FR) e ao próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP), importa refletir, e aferir, que impacto terá este novo programa fiscal.
O Fundo de Recuperação (“Next Generation EU”) envolve 750 mil milhões de euros, correspondente a 5% do PIB da EU, em 2019, e destina-se a financiar um conjunto de programas, definidos quer a nível nacional, quer pela Comissão Europeia. Dos 750 mil milhões de euros, 390 mil milhões de euros são para transferir a fundo perdido para os países e 360 mil milhões de euros são empréstimos.
De acordo com uma análise aprofundada da Sixty Degrees, os mercados de ações e de dívida reagiram positivamente ao acordo. “Não há dúvida de que a primeira emissão de dívida federal representa um passo importante para a UE”, sublinham os analistas.
Pela primeira vez, os países da União assumem em conjunto uma emissão de dívida para financiar um programa de recuperação parcialmente composto por subvenções.
“No limite, o acordo alcançado parece demonstrar a existência de suporte político à união económica e monetária, na tentativa de reduzir o risco de fragmentação”, reforçam.
Vamos a efeitos práticos
A Comissão Europeia não divulgou a alocação de verbas por país, já que esta estará dependente da trajetória do PIB e da taxa de desemprego das várias economias. No entanto, os governos espanhol e italiano avançaram com estimativas de recebimento de subvenções de 82 e 72 mil milhões de euros, respetivamente, equivalente a 4,6% e 5,8% do seu PIB, em 2019. Já o primeiro ministro grego estima receber cerca de 19 mil milhões de euros, ou seja, 10,5% do seu PIB.
Embora sejam valores significativos, na verdade tornam-se diminutos tendo em conta as dificuldades apresentadas por estas economias. Por exemplo, o défice orçamental em Itália deverá aumentar cerca de 10% do PIB, em 2020, e a dívida pública deverá passar de 135% do PIB, em 2019, para 160%, este ano, o que só por si representa 5 vezes mais que o valor de subvenções a receber.
Importa também salientar que apesar de 70% das alocações terem de ficar definidas, em 2021 e 2022, e as restantes 30%, em 2023, os fundos efetivamente poderão só vir a ser desembolsados ao longo de vários anos.
“Apesar deste avanço no sentido de algum federalismo, é claro que a União continua numa fase muito incipiente quando comparada com o sistema federal norte americano, que aliás foi constituído com base na mutualização, a preços de mercado, de toda a dívida dos Estados”, apontam os analistas da Sixty Degrees.
Por outro lado, acrescentam, a experiência passada de anteriores programas de estímulo na UE deixa muitas dúvidas sobre o potencial impacto positivo do atual Fundo de Recuperação na economia europeia. De recordar que, em julho de 2009, a UE lançou o “Plano Europeu de Recuperação Económica”, que representava 1,5% do seu PIB e visava ajudar a economia a recuperar da crise. O programa destinava-se especificamente a dinamizar o emprego nos setores de infra-estruturas, construção e comunicações.
De salientar também, o lançamento do “Plano Juncker”, em 2014, que mobilizou 360 mil milhões de euros em vários projetos. Entre 2004 e 2018, seguiram-se também uma série de programas “verdes” destinados a implementar a transição energética na UE, mas que muitas vezes também implicaram aumentos de impostos e medidas protecionistas.
Já para não mencionar a grandeza dos programas de estímulo do próprio BCE. Desde a crise financeira que o BCE tem levado a cabo vários programas de compras de ativos (dívida soberana) e implementado taxas de juro negativas. Em maio de 2020, o balanço do BCE representava 44% do PIB da Zona Euro versus 30% no caso da Reserva Federal.
O que falha?
Os resultados obtidos com todos estes estímulos foram fracos. Nos últimos anos, a Zona Euro tem sofrido revisões em baixa ao seu crescimento. No quarto trimestre de 2019, o panorama já era de fraqueza, com a Alemanha próxima de recessão, França e Itália a registarem estagnação e Espanha a desacelerar fortemente.
Mas a que se ficará a dever o insucesso dos planos de estímulo na Europa versus, por exemplo, os EUA? Segunda a consultora, uma das principais explicações parece ser o facto de assentarem numa lógica de “planeamento central” da economia. A maioria destes planos inclui fortes diretrizes sobre onde e como se deve investir. Frequentemente, o dinheiro acaba por ser canalizado para setores com excesso de capacidade e/ou próximos do poder político, cujo resultado é o aumento de empresas “zombie”.
O perpetuar dos “campeões nacionais”, aliado à elevada carga regulatória e fiscal, impede muitas vezes o vingar das empresas mais inovadoras, explicando também assim a ausência de gigantes tecnológicos na Europa.
“Assim sendo, o problema da Europa não parece ser a falta de estímulos, já que vários programas foram tendo lugar uns a seguir aos outros. Neste contexto, torna-se mais difícil acreditar que o recente Fundo de Recuperação possa ter impactos verdadeiramente positivos no crescimento económico europeu. Em suma, apesar do acordo alcançado ser um passo em frente no projeto europeu, a Sixty Degrees tem alguma cautela no que se refere ao seu impacto real no crescimento económico da UE”, conclui a especialista.