O mito do serviço público: Portugal paga a saúde como país liberal, mas acredita que vive num Estado social

Opinião de Nelson Pires, Diretor geral da Jaba Recordati e Presidente da Fundação Marquês de Pombal

Executive Digest
Dezembro 10, 2025
9:13

Portugal adora repetir que tem um sistema de saúde universal, público e robusto. É uma narrativa confortável, culturalmente enraizada e politicamente conveniente. O problema é que os números do Eurostat já não confirmam essa história. Pelo contrário, mostram um país que financia a saúde com um modelo muito mais próximo das economias liberais do que do Estado social europeu que diz ambicionar.

A despesa total em saúde, expressa em percentagem do PIB, está alinhada com a média da União Europeia. Esta coincidência, no entanto, mascara uma diferença estrutural essencial: quem financia essa despesa. Nos países europeus mais integrados nos modelos sociais avançados, o Estado assume o grosso do investimento. Em Portugal, o Estado recua, e o cidadão avança para preencher o vazio.

A despesa pública per capita é o indicador mais revelador. Enquanto a UE ultrapassa os 3000 euros anuais por habitante, Portugal não chega aos 1900. Isto significa que o investimento do Estado português representa apenas cerca de 60 por cento da média europeia. A ilusão do sistema público desfaz-se aqui: a cobertura universal existe formalmente, mas sustenta-se em condições financeiras muito abaixo das que caracterizam os modelos sociais avançados.

O quadro agrava-se quando se observa a estrutura interna da despesa. A fatia pública do financiamento da saúde é apenas 61,5 por cento, enquanto a média europeia ultrapassa os 80. Ou seja, Portugal transfere para as famílias uma parte significativa do custo da saúde que, noutros países, é assumida coletivamente. Esta realidade traduz-se em mais pagamentos diretos, mais peso dos seguros, mais desigualdade no acesso e maior vulnerabilidade económica perante a doença.

A narrativa nacional insiste em tratar estes números como exceções ou desvios conjunturais. Mas são sintomas de uma escolha política com décadas: um sistema público com ambição universalista, financiado como se fosse um complemento do setor privado. Esta incoerência tem consequências económicas diretas. Um país que subinveste no setor público de saúde enfrenta custos futuros mais elevados, menor produtividade e maior pressão sobre os orçamentos familiares, que acabam por substituir o que o Estado não financia.

O resultado é um modelo híbrido, mas não no sentido positivo do termo. É híbrido porque combina o discurso de proteção social com a prática financeira de um sistema liberalizado. Este modelo funciona apenas à custa de compromissos constantes, onde o Estado tenta remendar falhas estruturais com medidas avulsas, sem nunca enfrentar o problema central: o investimento público não acompanha a dimensão e a complexidade do sistema.

Reconhecer este desfasamento não é um exercício de dramatização. É uma necessidade para qualquer país que queira alinhar-se com os padrões europeus de desenvolvimento humano e económico. A saúde não é apenas um serviço público; é uma infraestrutura produtiva. Países que tratam a saúde como investimento estratégico têm resultados económicos mais sólidos a médio prazo.

Portugal não precisa de reinventar o sistema, mas precisa de o financiar como aquilo que afirma ser. Enquanto continuar a pagar como país liberal e a acreditar que vive num Estado social robusto, manterá um modelo incoerente, frágil e economicamente ineficiente. A realidade já o demonstra com clareza. Falta agora vontade política para o assumir.

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