Empresas centenárias: Livraria Bertrand- Capacidade de reinvenção
Em que contexto é que a empresa foi fundada e a que necessidades procurou responder?
A Livraria Bertrand é a livraria mais antiga do mundo em funcionamento, de acordo com o reconhecimento do Guinness World Records. Foi fundada em Lisboa, por Pedro Faure, um livreiro francês, no primeiro quartel do século XVIII. Em 1727, Pedro Faure já se encontrava estabelecido numa rua muito próxima da actual localização da Bertrand do Chiado, com uma loja de estampas, embora outros registos apontem o ano de 1732 como o ano da fundação da livraria-editora. Na época, Lisboa era uma capital fulgurante em termos económicos e um centro cultural e intelectual emergente, mas ainda carecia de uma oferta literária robusta e Pedro Faure tinha acesso a uma vasta oferta de livros em língua francesa que importou para Portugal. De referir que a Inquisição Portuguesa, activa entre 1536 e 1821, tinha uma forte influência sobre a vida cultural, intelectual e religiosa do País. Quando a Livraria Bertrand foi fundada em 1732, a Inquisição ainda estava em vigor, controlando rigorosamente a publicação e a venda de livros. Isso significava que a Bertrand, como outras livrarias à época, operava sob um regime de censura, onde certos temas, autores e ideias estavam proibidos ou eram rigidamente controlados. A livraria tinha de equilibrar a oferta de literatura com as restrições impostas pela Igreja e pelo Estado, ao mesmo tempo em que servia como ponto de encontro para aqueles que procuravam conhecimento e discussão intelectual dentro dos limites permitidos. A Livraria Bertrand constitui-se, assim, não só como um ponto de venda de livros, mas também se tornou um ponto de encontro para discussões literárias e filosóficas, fomentando o desenvolvimento cultural da cidade.
Quais os maiores desafios de uma marca centenária? Como se consegue garantir consistência de valores e posicionamento ao longo de décadas?
Os maiores desafios de uma marca centenária como a Livraria Bertrand são como conseguir adaptar-se às mudanças culturais, tecnológicas e económicas que vão acontecendo ao longo dos tempos, sem perder, ao mesmo tempo, a sua identidade e os valores essenciais que a diferenciam. Mas para manter esta consistência ao longo do tempo, é crucial que a marca tenha uma visão clara da sua oferta de valor e um conjunto de valores sólidos que orientem todas as decisões. No caso da Bertrand, isso inclui o compromisso com a promoção da leitura, a valorização da cultura e o serviço de excelência ao cliente. Esta capacidade de se reinventar sem perder de vista a sua missão original tem sido essencial para a sua longevidade, passando por um terramoto, duas guerras civis, um regicídio, várias perseguições, duas guerras mundiais, uma revolução e convivendo com inúmeros intelectuais, ilustres escritores e acima de tudo grandes leitores. Fizemos sempre parte do itinerário cultural da cidade de Lisboa e a história da Bertrand confunde-se indelevelmente com a história do livro em Portugal.
A Livraria Bertrand no decurso destes 292 anos foi uma testemunha viva de muitos dos grandes eventos que moldaram a história de Portugal e do mundo. Aqui estão alguns dos eventos mais significativos que ocorreram durante a sua longa existência:
1. A Inquisição e a Censura (1536-1821);
2. Terremoto de Lisboa de 1755;
3. Invasões Napoleónicas (1807-1811);
4. Revolução Liberal de 1820;
5. Regicídio e Primeira República (1908-1910);
6. Primeira Guerra Mundial (1914-1918);
7. Golpe de 28 de Maio de 1926 e instituição do Estado Novo (1926-1933);
8. Segunda Guerra Mundial (1939-1945);
9. Guerra do Ultramar (1961-1974);
10. Revolução de 25 de Abril de 1974;
11. Independência das Colónias (1974-1975);
12. Adesão de Portugal à Comunidade Europeia (1986);
13. Transformação Digital (Séc. XXI);
14. Pandemia de COVID-19 (2020-2022).
Na história da Livraria Bertrand há marcas indeléveis das repercussões ou mudanças concretas originadas por estes momentos cruciais da história portuguesa, nomeadamente após o Terremoto de 1755, no período das invasões napoleónicas (em que a família Bertrand se viu confrontada com a perseguição aos franceses), nos anos que se seguiram à Primeira República ou quando esta foi substituída pelos tempos autoritários e censórios do Estado Novo. A Livraria Bertrand teve de adaptar-se e responder às mudanças sociais, políticas e culturais ao longo dos séculos. A sua longevidade reflecte a capacidade de adaptação a contextos profundamente diversos, desde catástrofes naturais até grandes transformações políticas e sociais.
Que práticas de gestão foram fundamentais para o sucesso a longo prazo da empresa?
Algumas práticas de gestão fundamentais incluem a capacidade de inovação contínua, a adaptação às mudanças de mercado, com o advento da distribuição moderna e implementação da lógica dos centros comerciais em Portugal, e
a manutenção de uma forte relação com os clientes e a comunidade literária. Além disso, a Bertrand investiu na diversificação da sua oferta e na modernização das suas operações com recurso a tecnologia, do que é um bom exemplo a criação do site Bertrand.pt e a sua app de leitura de ebooks e audiolivro. No plano da sua intervenção na cultura, promove a organização de eventos culturais e criou recentemente um prémio literário anual para a melhor obra inédita de autores lusófonos. Uma gestão financeira prudente, aliada a uma estratégia de expansão cuidadosa e a preservação de um legado cultural, também foram determinantes para o sucesso a longo prazo da empresa.
A empresa tem vindo a adaptar-se às mudanças no mercado e à inovação tecnológica. Em que medida?
A Livraria Bertrand tem demonstrado uma capacidade notável de adaptação às mudanças no mercado. Exemplo disso é o facto de, em 1985, atendendo às necessidades do mercado e aos desafios impostos pelo aumento de competitividade dos principais players do mercado editorial português, terem sido autonomizados os dois ramos do negócio que, desde sempre, em conjunto com o negócio livreiro, constituíam a base da Bertrand – o negócio editorial e o negócio da distribuição de publicações. Esse movimento, que garantiu a criação de uma estrutura autónoma para dois negócios e, consequentemente, uma maior especialização nas referidas actividades, foi essencial para manter e potenciar o sucesso que estes negócios tinham vindo a registar aos longo dos tempos. O resultado desta aposta é evidente na
posição de mercado ocupada pela Distribuidora de Livros Bertrand, o maior distribuidor a actuar no mercado livreiro português, representando inúmeras editoras nacionais de sucesso, e pela Bertrand Editora, casa editorial de referência do mercado português, que publica através de algumas das mais prestigiadas chancelas do mercado, como a Editora Bertrand, Temas e Debates, Quetzal, Contraponto, Pergaminho e 11×17 (a colecção de livros de bolso mais bem-sucedida em Portugal), alguns dos mais importantes autores nacionais e internacionais, como Anne Applebaum, António Damásio, Dan Brown, Daniel Goleman, Frederico Lourenço, José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, José Tolentino Mendonça, Margaret Atwood, Paulo Coelho, Robin Sharma e Stephen King, entre muitos outros.
Já no que diz respeito à adaptação à inovação tecnológica, a Livraria Bertrand, embora sendo um retalhista especializado com praticamente três séculos de actividade, tem também procurado adaptar-se às mudanças que têm vindo a ocorrer no mercado. Com efeito, a empresa expandiu a sua presença para o ambiente online com a criação de uma loja virtual, permitindo a compra de livros pela internet. Além disso, tem investido em plataformas tecnológicas para disponibilizar ebooks e audiolivros, respondendo à procura crescente dos consumidores digitais. Também tem utilizado as redes sociais e outras ferramentas digitais para se conectar com o público e promover eventos literários, num esforço por manter a relevância num mercado em constante evolução.
De que forma a cultura empresarial contribui para a longevidade da empresa?
A cultura empresarial da Livraria Bertrand é centrada na valorização do livro, da leitura e da cultura. Este foco cria uma conexão emocional forte tanto com os colaboradores como com os clientes, que se sentem parte de uma grande comunidade. A promoção de um ambiente onde o conhecimento, a educação e o respeito pelo cliente são prioridades, tem contribuído significativamente para a longevidade da empresa. A Bertrand mantém uma cultura de inclusão e inovação, que permite que a empresa evolua enquanto preserva a sua herança e identidade.
Como é que a empresa mantém a fidelidade dos seus clientes ao longo dos anos?
A Livraria Bertrand mantém a fidelidade dos seus clientes através de um compromisso contínuo com a qualidade do serviço, a uma oferta diversificada e a criação de experiências únicas para os seus clientes, apostando na personalização do atendimento e na construção de relacionamentos de longo prazo. Além disso, a Bertrand promove regularmente eventos culturais, como lançamentos de livros e debates, que fortalecem a ligação entre a marca e os seus clientes. O sentimento de pertença a uma comunidade literária, criado ao longo dos séculos, é um dos maiores trunfos da Bertrand na retenção de clientes.
O nosso manifesto “Somos Livros!” procura sintetizar a forma de estar da Livraria Bertrand ao longo dos séculos:
O Fim é o princípio.
Uma página que se vira.
Somos a tinta fresca em folha áspera.
A capa dura. Aquilo que procura.
Somos a História.
Desde sempre.
O terramoto de 55 e a revolução de 74.
Somos todos os nomes.
As pessoas do Pessoa.
Alexandre Herculano e Ramalho Ortigão.
O Mundo na mão.
Ponto de encontro.
De quem pensa. De quem faz pensar.
Temos pele enrugada de acontecimento.
As páginas são nossas.
E o pó que descansa na capa também.
Sabemos falar de guerra e paz,
explicar a origem das espécies
e dizer qual a causa das coisas.
Somos o que temos.
A tradição e a vocação.
A atenção. A opinião.
A história da dor e de amor.
Somos o nome do escritor.
A mão do leitor.
Somos Livros!