Acesso à saúde mental no ensino superior: promessa ou realidade?

Opinião de Ricardo Almeida, psicólogo do Gabinete de Apoio Psicológico e de Bem-estar da Atlântica Instituto Universitário

Executive Digest
Outubro 21, 2025
14:29

Por Ricardo Almeida, psicólogo do Gabinete de Apoio Psicológico e de Bem-estar – Atlântica Instituto Universitário

A 30 de setembro de 2024 foi lançado pelo Governo Português, resultado de uma parceria entre o Ministério da Juventude e Modernização e o Ministério da Educação, Ciência e Inovação em colaboração com a Ordem dos Psicólogos Portugueses e com a Ordem dos Nutricionistas, um programa que oferece apoio a estudantes do ensino superior, tanto de universidades públicas como privadas, e que se encontra sob a tutela da Direção-Geral do Ensino Superior. Nesse programa, encontra-se previsto o acesso gratuito a cuidados de saúde mental e de saúde alimentar, através de consultas de psicologia e de nutrição.

Para qualquer um dos casos, o processo é simples e intuitivo. O estudante acede ao portal do Governo e efetua o pedido do cheque, selecionando a Instituição de Ensino Superior a que pertence. Posteriormente são-lhe atribuídos os códigos das consultas de avaliação e o estudante pode selecionar um profissional de saúde e agendar a consulta, através da listagem fornecida. No caso dos “Cheques-Psicólogo”, após o pedido, são atribuídos dois cheques ao estudante, para efeitos de avaliação e diagnóstico, sendo depois atribuídos de forma faseada até mais 10 cheques, mediante o cumprimento dos requisitos necessários. Cada cheque equivale a uma consulta e os estudantes podem usufruir de duas a doze consultas. No caso dos “Cheques-Nutricionista”, é atribuído um cheque para uma consulta de avaliação e diagnóstico nutricional, durante a qual o nutricionista determina se o estudante preenche os critérios de acesso a esta medida, sendo-lhe atribuídos os restantes cinco cheques após essa confirmação. Após a data de emissão, os cheques para as consultas de psicologia e de nutrição têm uma validade de 12 meses.

Até aqui, tudo se apresenta com uma roupagem excelente. No entanto, se formos analisar em pormenor, pelo menos na realidade da aplicação dos cheques-psicólogo, a medida é mais restritiva do que aparenta, deixando de fora desta oportunidade de acompanhamento psicológico um conjunto de estudantes, jovens adultos, numa das fases mais complexas das suas vidas, por apresentarem alguns indicadores de sofrimento psicológico mais intenso, com manifestação de sintomatologia mais forte e complexa. Estas limitações e exclusões entendem-se, em certo ponto, por não ser possível englobar todos os estudantes nesta medida específica. Paralelamente, em muitos destes casos, existe a necessidade perentória de encaminhamento para Serviços de Saúde que garantam uma resposta adequada à complexidade desses casos, que, geralmente, envolve uma resposta integrada e multidisciplinar. No entanto, este entendimento levanta uma outra questão associada ao encaminhamento e intervenção necessário, nesses casos, pelos Serviços de Saúde. Sendo nesse ponto que nos deparamos com a urgente necessidade de encarar com seriedade a reestruturação da integração da psicologia no Serviço Nacional de Saúde (SNS). A evidência científica, os indicadores de saúde pública e a experiência dos profissionais convergem num diagnóstico claro: o sistema continua desajustado, subdimensionado e ineficaz na valorização dos psicólogos e no acesso da população aos seus cuidados.

Reforçando a pertinência e necessidade desta medida específica, tal como o avanço que esta representa nas políticas públicas de saúde mental e psicológica e na sua aplicabilidade às necessidades contextuais e situacionais do dia-a-dia, é de salientar também a criação do programa nacional de promoção da saúde mental no ensino superior, por meio do Despacho n.º 5506/2023. A este nível, sai mais uma vez ressalvada a importância de uma estratégia nacional de promoção e prevenção da saúde mental da população portuguesa, alicerçada num modelo de intervenção faseada e integrada num sistema de cuidados de saúde mental funcional e sequencial.

A afluência aos cheques-psicólogo e as solicitações aos serviços de psicologia escolares e universitários acabam por se apresentar como representativos das necessidades da população em geral, em que muitos precisam, mas poucos conseguem aceder. A Ordem dos Psicólogos Portugueses propõe como referência mínima a existência de 20 psicólogos por 100 mil habitantes. No entanto, essa meta está ainda longe de ser atingida. Este défice tem consequências concretas: listas de espera prolongadas, desigualdades crescentes no acesso e uma resposta pública fragilizada, que compromete o princípio constitucional da universalidade dos cuidados de saúde.

A Organização Mundial da Saúde tem reiterado a importância estratégica da psicologia na resposta integrada às necessidades de saúde mental. Portugal não pode continuar a adiar o reforço da psicologia no SNS e nas respostas locais das autarquias e juntas de freguesia – este é um investimento estrutural, com impacto direto na qualidade da assistência, na sustentabilidade do sistema e na saúde dos cidadãos.

Mais do que uma reorganização administrativa, é necessária uma mudança de paradigma. A saúde psicológica deve ser assumida como componente essencial da saúde global e não como um complemento opcional ou secundário. A pandemia, as crises socioeconómicas e o agravamento do sofrimento psicológico da população tornaram evidente a necessidade de uma resposta mais robusta, acessível e eficaz neste domínio.

É imperativo que a psicologia deixe de ser uma promessa recorrente e passe a ser uma prioridade concreta da política de saúde pública, com implementação material e concreta na realidade da vida quotidiana das pessoas. É urgente reforçar o número de psicólogos nos serviços públicos, mas também garantir que medidas como esta tenham continuidade, sejam avaliadas e possam ser alargadas progressivamente.

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