Vaticano escreveu em documento oficial que se deve “respeitar a vontade do paciente” em fim de vida. Católicos denunciam que se está a “abrir portas” à eutanásia

O Vaticano lançou recentemente o “Pequeno Léxico Sobre o Fim da Vida”, um documento de 88 páginas publicado pela Pontifícia Academia para a Vida, que tem como objetivo uniformizar conceitos e criar uma linguagem comum sobre os procedimentos relacionados com o fim da vida.

Executive Digest
Agosto 19, 2024
16:23

O Vaticano lançou recentemente o “Pequeno Léxico Sobre o Fim da Vida”, um documento de 88 páginas publicado pela Pontifícia Academia para a Vida, que tem como objetivo uniformizar conceitos e criar uma linguagem comum sobre os procedimentos relacionados com o fim da vida. No entanto, a publicação está a causar uma enorme agitação entre os católicos, especialmente entre os mais conservadores, e a relançar a discussão sobre a eutanásia.

O documento aborda várias questões éticas e médicas ligadas ao fim da vida, como “cuidados paliativos”, “eutanásia” e “sedação profunda”. Um dos pontos mais controversos do léxico é a orientação que obriga os médicos a “respeitar a vontade do paciente que recusar a alimentação e a hidratação preparadas para pacientes vegetativos”. Esta declaração, que sugere que a recusa consciente e informada de alimentação e hidratação artificiais deve ser respeitada, está a ser interpretada por muitos como uma abertura à eutanásia, o que tem gerado críticas ferozes dos setores mais tradicionais da Igreja.

Os críticos mais vocalmente opostos à publicação acusam a Santa Sé de “abrir as portas à eutanásia”, argumentando que permitir que um paciente recuse alimentação e hidratação pode, de facto, ser uma forma de facilitar a morte por inanição ou desidratação. Estes setores alegam que, ao validar tal recusa, o Vaticano está a permitir que se tire a vida de pacientes vulneráveis, o que contraria os ensinamentos tradicionais da Igreja sobre a santidade da vida.

Em resposta a estas críticas, Nuno Almeida, bispo de Bragança e presidente da Comissão Episcopal do Laicado e Família, afirma ao Jornal de Notícias que “não há nenhuma cedência a nada”, mas questionou a sensatez de se prolongar a vida através de “tratamento desproporcional aos efeitos benéficos para a pessoa em causa”. Ele sublinhou que a vontade do doente deve ser respeitada, mesmo em casos onde o tratamento apenas prolonga o sofrimento sem oferecer uma cura ou melhoria significativa.

A introdução do léxico, assinada pelo arcebispo Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, tenta acalmar os ânimos ao enfatizar que o objetivo do documento é contribuir para um debate mais esclarecido sobre o final da vida, minimizando a “componente da discórdia” que muitas vezes resulta de um “uso impreciso das noções implicadas no discurso”. Paglia destaca a importância de usar uma linguagem precisa e ponderada ao abordar temas tão sensíveis como a morte e os cuidados no final da vida.

Além disso, o documento sugere que os católicos considerem a elaboração de um Testamento Vital, onde possam expressar antecipadamente os seus desejos em relação aos tratamentos médicos que desejam ou não receber em situações críticas. Nuno Almeida destacou que “a dignidade do fim de vida também passa pela elaboração do Testamento Vital”, permitindo que as pessoas tenham controlo sobre as decisões a serem tomadas em situações onde já não possam comunicar.

Apesar destas clarificações, o documento está a ser visto como uma mudança significativa na posição do Vaticano sobre o fim da vida. Ainda recentemente, o Dicastério para a Doutrina da Fé reafirmou que, “mesmo numa situação em que exista certeza moral de que um paciente nunca irá recuperar, não é permitido retirar-lhe alimentos e água”. Esta posição tradicional da Igreja sublinha que a alimentação e hidratação são cuidados básicos que não devem ser interrompidos, independentemente do estado do paciente.

A controvérsia intensificou-se a tal ponto que Vincenzo Paglia, o arcebispo no centro da polémica, solicitou uma audiência com o Papa Francisco para discutir as implicações do documento e responder às críticas. Paglia esclareceu posteriormente que “a Igreja reitera a sua oposição absoluta a qualquer forma de eutanásia e suicídio assistido”, mas sublinhou que também é necessário refletir sobre “até que ponto a obstinação irracional de terapias não significa a expressão de uma medicina que desrespeite o bem geral do doente”.

O arcebispo acrescentou que “o léxico agora publicado quer, no essencial, que não se perca de vista, mesmo na morte, a totalidade da pessoa”. Esta visão holística da pessoa, que abrange tanto a vida como o processo de morrer, é central no documento, mas não foi suficiente para acalmar os críticos, que continuam a ver o texto como uma possível abertura para práticas que, até agora, foram claramente condenadas pela Igreja.

Com a crescente polémica, espera-se que o Dicastério para a Doutrina da Fé publique uma nota explicativa para reafirmar a oposição da Igreja à eutanásia e clarificar a posição do Vaticano em relação às questões levantadas pelo “Pequeno Léxico Sobre o Fim da Vida”. Esta nota poderá ser crucial para evitar divisões internas mais profundas e para reassegurar aos fiéis que a Igreja continua a defender os princípios fundamentais da santidade da vida, tal como tem sido a sua tradição ao longo dos séculos.

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