UE e França sob pressão para não incinerarem 9 milhões de euros em contracetivos comprados pelos EUA

A iminente destruição de contracetivos no valor de mais de 9 milhões de euros, adquiridos pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), está a gerar uma onda de indignação internacional.

Pedro Gonçalves
Agosto 5, 2025
15:59

A iminente destruição de contracetivos no valor de mais de 9 milhões de euros, adquiridos pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), está a gerar uma onda de indignação internacional. Deputados europeus e organizações não-governamentais apelam à União Europeia e à França para que intervenham e impeçam que este stock de produtos de saúde sexual e reprodutiva seja incinerado em território francês, depois de ter sido armazenado na Bélgica.

A medida resulta da reativação da chamada Mexico City Policy, uma política do governo norte-americano que proíbe o financiamento de organizações internacionais que ofereçam ou promovam serviços de aborto. A política foi reinstituída em janeiro pelo presidente Donald Trump, tendo impacto direto sobre programas como o da USAID, cujos fundos foram substancialmente cortados.

Segundo revelou o Guardian, os contracetivos em causa — maioritariamente dispositivos intrauterinos (DIU) e implantes de longa duração — deixaram de poder ser distribuídos por potenciais implicações com esta política restritiva. O porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Tommy Pigott, afirmou na passada quinta-feira que os EUA “ainda estão a avaliar o caminho a seguir” e acrescentou que não se trata de “preservativos, mas de produtos potencialmente abortivos” adquiridos sob a administração Biden, o que poderia violar a política agora em vigor.

Perante este cenário, a eurodeputada ecologista francesa Mélissa Camara dirigiu-se por carta à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, solicitando uma intervenção direta de Bruxelas. “Estamos a pedir à Comissão Europeia que intervenha”, disse Camara ao Politico, salientando que “a União Europeia deve assumir uma posição firme, afirmando que a defesa dos direitos das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos em todo o mundo é um dos valores fundamentais que defende”.

O apelo de Camara coincide com um contexto político em que França se tem destacado pela consagração do direito ao aborto na sua Constituição, medida tomada no ano passado. Neste espírito, Marine Tondelier, líder do partido Os Verdes em França, também escreveu uma carta aberta ao presidente Emmanuel Macron, na qual afirma que o país “não pode ser cúmplice, nem que seja de forma indireta, de políticas retrógradas”, nem “tolerar que recursos médicos vitais sejam destruídos quando poderiam salvar vidas, prevenir gravidezes indesejadas e contribuir para uma maior autonomia das mulheres”.

Apesar da pressão, o governo francês não avançou com garantias concretas. Em resposta escrita enviada ao Politico, um responsável diplomático francês indicou apenas que Paris continuará a “acompanhar a situação” e apoiará os esforços da Bélgica para “encontrar uma solução que evite a destruição dos contracetivos, de modo a que possam chegar às mulheres e homens que deles necessitam e os aguardam em todo o mundo”.

Por seu lado, o ministro dos Negócios Estrangeiros belga, Maxime Prévot, afirmou à agência AFP que o seu governo já iniciou “conversações diplomáticas com a embaixada dos EUA em Bruxelas” e está a “explorar todas as vias possíveis para evitar a destruição destes produtos, incluindo soluções de relocalização temporária”.

A Comissão Europeia confirmou, através de um porta-voz, ter tomado nota da carta enviada por Camara e reconheceu a relevância das preocupações manifestadas. O mesmo porta-voz adiantou que várias organizações internacionais, incluindo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a MSI Reproductive Choices, apresentaram propostas ao governo norte-americano para recolherem os contracetivos e assegurarem a sua distribuição. Contudo, até agora, essas ofertas não foram aceites.

A indignação tem vindo a crescer nas últimas semanas. Várias organizações da sociedade civil e de saúde global criticaram a decisão norte-americana como “inaceitável” e “perigosa”. Avril Benoît, diretora-executiva da Médicos Sem Fronteiras (MSF) nos Estados Unidos, classificou a decisão como “um ato intencionalmente irresponsável e prejudicial contra mulheres e raparigas em todo o mundo”. Num comunicado oficial, sublinhou que “os contracetivos são produtos de saúde essenciais e que salvam vidas”.

Também a Federação Internacional de Planeamento Familiar (IPPF) afirmou ter-se disponibilizado para recolher os produtos atualmente armazenados na Bélgica e transferi-los para o seu armazém nos Países Baixos, com o objetivo de proceder à sua distribuição global. Micah Grzywnowicz, diretor regional da rede europeia da IPPF, acusou o governo norte-americano de hipocrisia: “É o cúmulo da hipocrisia um governo apregoar eficiência e combate ao desperdício, para depois destruir de forma imprudente suprimentos que salvam vidas, precisamente quando a sua necessidade nunca foi tão grande”, declarou.

A destruição iminente dos contracetivos é apenas um reflexo de uma reorientação profunda da política externa norte-americana em matéria de saúde global. Desde a sua posse, em janeiro, Trump deu início ao desmantelamento da USAID, eliminando mais de 80% dos seus programas. Este corte abrupto tem levado várias organizações internacionais a apelarem à União Europeia para que reforce o seu papel no financiamento de iniciativas essenciais para a saúde e os direitos reprodutivos a nível mundial.

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