Uma questão de ética: o lugar da Inteligência Artificial na prática médica
Por Ana Rita Silva, Business Development Manager of Medical Devices & Lifesciences at Critical Software
Muito se tem falado, nos últimos anos, de Inteligência Artificial (IA), e a área da saúde não fica indiferente. Neste setor em específico, a IA tem ganho a sua relevância não só a nível hospitalar, mas principalmente a nível da oferta de produtos no mercado – robôs cirúrgicos, imagiologia assistida, monitores de pressão arterial, estetoscópios, etc -, prevendo-se um crescimento significativo deste setor até 2030.
A sépsis, uma infeção generalizada potencialmente fatal em pacientes, é responsável por aproximadamente 11 milhões de mortes anualmente – quase 1 em cada 5 pessoas – ultrapassando a mortalidade combinada de todos os tipos de cancro, segundo análise da farmacêutica Roche. Face a esta realidade, os resultados da utilização da IA são inegáveis, permitindo o início do tratamento mais cedo e, consequentemente, diminuindo drasticamente o risco de morte.
A IA, englobando algoritmos que incluem “data mining” e “machine learning”, consegue atuar como uma ferramenta de suporte à decisão clínica (CDS) para os médicos. Este suporte pode ser feito através da análise de dados e consequente aprendizagem contínua, tornando-se um instrumento bastante poderoso e preponderante nesta área. A questão que se coloca agora é perceber que implicações éticas existem quando o profissional de saúde usa algo não humano numa consulta ou num diagnóstico importante, e muitas vezes decisivo, na vida de alguém.
Em Portugal, estão publicados em Diário da República, tempos padrão recomendados para consultas que colocam uma pressão indireta sobre o médico. A título de exemplo, recomenda-se que uma consulta de urologia dure 20 minutos. Ainda que se frequente a mesma especialidade, cada paciente tem a sua especificidade e um historial clínico único e diferente, que requer um atendimento personalizado.
É aqui que a IA pode fazer a diferença. O seu uso, para prestar suporte à decisão, será crucial para baixar os tempos de consulta, uma vez que o médico poderá ter a ajuda desta ferramenta para percorrer mais facilmente o historial clínico de cada paciente, encontrar casos clínicos semelhantes e sugerir um caminho a seguir. Contudo, existe um revés: num caso dito “limite”, como determinar a responsabilidade de um ato médico que foi decidido pela IA e não pelo médico? Acreditamos que o médico, mesmo sujeito a muita pressão e cansaço, terá o discernimento de usar os seus estudos para tomar uma decisão final. Além disso, como sabemos se o algoritmo usado respeita a privacidade dos doentes e protege eficazmente os seus dados? Como é que o doente é protegido? Assinou um consentimento informado?
Um outro risco é a possibilidade de os pacientes confiarem cada vez mais, cegamente, na IA, tornando-a dominante na prática médica. Essa dependência excessiva da tecnologia, comprovada por vários estudos (e em tantas áreas), pode desumanizar a saúde. É essencial que os médicos mantenham no centro da sua prática a dimensão humana, o núcleo da relação médico-paciente, garantindo que a tecnologia é usada como uma ferramenta complementar e não como um substituto para o cuidado e empatia inerentes ao ser humano.
No futuro, a IA vai ser capaz de alterar as condições de acessibilidade ao SNS, dado que, conjugada, por exemplo, com a telemedicina, torna o acesso à saúde muito mais rápido e eficaz, contribuindo para a diminuição das listas de espera e acessibilidade em áreas mais remotas. Desta forma, os médicos ficarão mais disponíveis para atender os pacientes, reservando-se a IA para as tarefas administrativas, por exemplo.
Em várias regiões, a IA já integra o dia-a-dia da prática médica, sendo utilizada em consultas, diagnósticos, tratamentos, biópsias e cirurgias robóticas. A IA é também usada para a vigilância de doenças, alertas precoces, criação de modelos preditivos e análise de dados de saúde pública. Estas tecnologias ajudam a identificar tendências de saúde, otimizar recursos e desenvolver intervenções eficazes e a caminhar para uma “medicina personalizada”.
Muitos estudos apontam que, quando utilizadas no momento e maneira certa, as ferramentas baseadas em IA podem, entre outros, aliviar a pressão de recursos no trabalho administrativo e laboratorial, enquanto ajudam a melhorar a eficiência e a precisão das decisões clínicas em diagnóstico. É importante ver mais além e perceber que a IA tem, sim, muito para nos oferecer, quando os seus esforços são, efetivamente, direcionados no sentido certo. A Europa já deu o primeiro passo nesse sentido, aprovando o AI Act.
A ética tem de estar subjacente às decisões humanas, sempre que apliquem opções sobre qual o caminho a seguir, apontando, em última análise, para o caminho certo. Assim, é importante que a ética, peça crucial da prática médica, consiga integrar a utilização de IA numa ótica de complementaridade.