Trilhos para um amanhã certamente incerto

Por António Lagartixo, CEO da Deloitte Portugal

Vivemos tempos em que começar por dizer que vivemos tempos de incerteza, começa a ser um lugar-comum. Mas como muitos dos lugares-comuns, também este se reveste de uma crua e inabalável verdade.

É incontornável. Vivemos tempos de incerteza. Depois de uma pandemia e crise sanitária à escala mundial, que parou e transformou por completo o nosso dia a dia, assistimos ao regressar da guerra a solo europeu, colocando em causa pilares da sociedade que considerávamos inamovíveis. Num momento em que ainda não temos uma percepção clara de como irá evoluir este conflito, regista-se o aumento crescente de tensões geopolíticas em diferentes regiões do globo e uma agudização dos índices macroeconómicos e financeiros.
Ao longo dos últimos meses temos assistido a um cenário de desaceleração económica, com a projecção de crescimento global a cair dos 3,4% registados em 2022, para 2,9% em 2023. A par desta desaceleração, o International Monetary Fund, prevê para 2023 uma inflação a rondar os 6,6%, que apesar de representar um decréscimo quando comparado aos 8,8% do ano anterior, é substancialmente superior aos registos pré-pandémicos. Neste capítulo será interessante acompanhar o que será a evolução da inflação a partir de Março/ Abril, visto que anteriormente estávamos a comparar dois mundos dificilmente comparáveis, economia de paz e economia de guerra.
Em consequência da escalada da inflação, os Bancos Centrais, com o objectivo de manter a estabilidade dos preços, aumentaram as taxas de juro diretoras. Na zona Euro, as taxas Euribor atingiram os 2,99% (3 meses) e 3,58% (12 meses) em março de 2023 – um aumento considerável num período inferior a 1 ano, uma vez que em Junho 2022, antes do BCE ter aumentado as taxas de juro pela primeira vez em 11 anos, estas encontravam-se em terreno negativo.
A combinação destes factores encerra naturalmente um conjunto alargado de desafios para a economia, colocando em causa a capacidade de investimento das empresas e a liquidez das famílias, potenciando um sentimento crescente de insatisfação e de risco social. E se precisávamos de mais ingredientes para reforçar a complexidade do contexto que enfrentamos, os acontecimentos que marcaram o sector financeiro nas últimas semanas, vieram recordar-nos a crise financeira de 2008, lançando um fantasma de instabilidade e potenciais riscos de contágio.
Como comecei por dizer. É incontornável. Vivemos tempos de incerteza. Tempos em que é difícil ter uma visão clara do todo. Tempos em que é difícil fazer previsões e montar estratégias claras para o futuro. Mas é este o contexto que vivemos e é neste contexto que as organizações têm de definir o seu caminho, e definir os trilhos a percorrer. No meio de tanta incerteza e volatilidade, por trás das nuvens e sombras, parece-me que há duas dimensões que, qual estrela polar, devem emergir e guiar as organizações no traçar destes caminhos de futuro – digitalização e sustentabilidade.
Se a transformação digital é essencial para que as organizações assegurem a competitividade, quer seja por via do aumento de eficiência e redução de custos, quer seja por via do crescimento do negócio, chegámos a um momento em que é manifestamente imprudente não colocar as matérias de sustentabilidade na linha da frente das nossas preocupações. E se houve tempos em que poderíamos pensar limitar a dimensão sustentabilidade a temas ambientais e climáticos, hoje é evidente que temos de ter um entendimento mais lato, de modo a contribuirmos para a construção de uma sociedade mais equilibrada e inclusiva.
Complementarmente à necessidade destas duas dimensões estarem no top of mind dos decisores, acredito que estas têm uma relação estreita e que as organizações as devem compreender e trabalhar de forma integrada. As organizações que o consigam fazer, construindo uma visão que combine as ambições e objectivos de transformação digital e de sustentabilidade, posicionar-se-ão de forma mais competitiva no mercado e serão capazes de potenciar o valor aportado pelos seus processos de transformação – green by digital and green of digital. A criação desta agenda integrada, potenciada por dimensões como Inteligência Artificial e Analytics, irá permitir encontrar um espaço em que a transformação digital amplifica e promove a sustentabilidade.
Naturalmente que a adopção destes processos transformacionais, muito por via da capacidade tecnológica de que hoje dispomos, acarretam um conjunto de desafios e questões, sobre as quais as empresas, e a própria sociedade, terão de se debruçar e encontrar compromissos. Qual será o equilíbrio entre a dimensão digital e humana? Que natureza de tarefas deverá continuar a ser assumida pelas equipas de trabalho? Como podem as organizações reconverter e requalificar o seu talento? Existem limites éticos para a automatização da tomada de decisão?
Não desvalorizando todas estas questões, julgo que não devem ser encaradas como um obstáculo per si, mas como uma etapa no trilho de desenvolvimento que temos de percorrer. Vivemos tempos de incerteza. Tempos em que as dúvidas parecem suplantar as certezas. Mas é em tempos como este que é possível encontrar oportunidades para os indivíduos, organizações e sociedade se reinventarem. No meio de tanta volatilidade e complexidade, acredito que as dimensões digital e sustentabilidade devem, e vão, nortear o nosso futuro. Tenhamos nós a clarividência para identificar os trilhos a percorrer, trabalhando correctamente estas dimensões, e iremos afastar as nuvens de incerteza e construir, em conjunto, um futuro mais próspero, inclusivo e equitativo.

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 205 de Abril de 2023