
Precisamos de falar sobre burnout
Por Luísa Pestana, administradora da Vodafone Portugal
Estávamos ainda em 2019, um tempo relativamente feliz, em que nunca tínhamos sequer ouvido a palavra covid-19, quando a organização mundial de saúde anunciou que iria incluir o burnout na nova classificação internacional de doenças.
Usado como base nas tendências e estatísticas do sector da saúde, o documento, intitulado CID-11, passou a vigorar no início deste ano, trazendo novamente à tona a discussão sobre o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) caracteriza como um “fenómeno ocupacional”.
Segundo a OMS, o burnout vem acompanhado de «um sentimento de exaustão, cinismo ou sentimentos negativistas ligados ao trabalho e eficácia profissional reduzida». É importante notar que, mais do que uma simples consequência de uma vida profissional com carga horária excessiva ou de muitas responsabilidades, esse fenómeno pode surgir mesmo naqueles que não trabalham fora de horas, mas que vivenciam, por longos períodos, sentimentos de falta de propósito, de autonomia para tomar decisões ou de justiça no local de trabalho, bem como apresentar valores incompatíveis com a empresa e/ou o cargo que exercem.
Mas, mesmo não tendo o trabalho e/ou a dinâmica profissional “dos nossos sonhos”, muitos de nós, pelo menos até 2019, conseguíamos estabelecer maneiras de encontrar prazer e propósito em outras tarefas para além do escritório. No entanto, esse problema parece que sofreu uma grande aceleração com a COVID-19. Afinal, o que não sabíamos era que a pandemia, que ainda estava por vir, teria um peso gigantesco na disseminação da síndrome de burnout.
Sem um equilíbrio saudável e imperativo entre a vida pessoal e profissional, uma vez que estávamos todos trancados nas nossas casas, e com tamanhas ansiedades e medos tanto pela nossa saúde quanto pelo nosso futuro incerto, ficou quase impossível manter o optimismo e o ânimo de viver nos últimos anos. Principalmente quando falamos de mulheres, que, pela divisão desigual de tarefas dentro do núcleo familiar, já viviam sobrecarregadas muito antes da COVID-19 surgir na nossa vida – e, é claro, só ficaram ainda mais exaustas depois disso.
Tempos atrozes assim certamente deixam marcas numa sociedade e nos seus indivíduos, assim como já vimos acontecer noutros períodos históricos ao longo dos séculos. E a ausência de debate em torno de um tema, ainda mais de saúde mental, não faz com que o mesmo desapareça. Muito pelo contrário, é exemplo a nossa relutância em falar sobre transtornos mentais mesmo fazendo parte de um dos países que mais consomem medicamentos ansiolíticos e antidepressivos no mundo (Portugal está no quinto lugar na lista da OCDE).
Mas, ao mesmo tempo em que celebro e encorajo a discussão sobre a saúde mental no âmbito profissional, pergunto-me, também, se já estamos prontos para dar início a uma conversa extremamente importante para o futuro do trabalho: será que sabemos delinear o que é, de facto, vivenciar um stress crónico e o que são os períodos de maior pressão no trabalho?
De um modo bastante objectivo, o stress nada mais é do que uma resposta fisiológica do nosso corpo perante situações de perigo ou ameaça. Evolucionariamente, quando os nossos ancestrais se deparavam frente a frente com um leão e precisavam de fugir, por exemplo, o stress era muito bem-vindo. Para fugir de um leão, precisamos de toda a energia existente no nosso corpo, toda uma produção de adrenalina e o cortisol concentrados num único objectivo: sobreviver.
A questão é que, nos dias de hoje, são poucos os momentos em que as nossas vidas estão, de facto, ameaçadas. Sem precisar de lutar ou correr contra um perigo iminente, todas essas hormonas produzidas perante situações adversas acabam sufocadas no nosso corpo, gerando, então, o stress e diversas doenças. Mas se é praticamente impossível viver uma vida sem stress, o que podemos fazer?
Kelly McGonigal, renomada psicóloga em saúde e professora de Stanford University, apresenta uma perspectiva bastante interessante sobre o tema. Ela propõe que mudemos a narrativa em torno do stress. Para a académica, e outros estudiosos do tema, compreender que o nosso coração está a bater mais forte simplesmente porque nos estamos a preparar para uma determinada acção ou que estamos a respirar mais rápido porque o nosso cérebro precisa de mais oxigênio, é encarar o stress como um sinal de que o nosso corpo está fortalecido e preparado para enfrentar desafios.
Diversas investigações sobre o tema já concluíram que, ao encararmos o stress como útil para a nossa performance, conseguimos ficar mais confiantes, menos ansiosos e distantes de um cenário em que o stress pode acabar mesmo por se tornar algo crónico, podendo, inclusivamente, levar ao temido burnout.
Sentir pressão no trabalho faz parte do jogo, principalmente nas funções com maiores responsabilidades. Controlar a narrativa em torno desses momentos ou períodos, no entanto, permite com que naveguemos pela turbulência inerente à vida com maior resiliência. Sei que levar essa percepção do plano teórico para o prático não é a tarefa mais fácil do mundo mas, para sobreviver aos novos tempos, considero imperativo desenvolvermos essa capacidade.
Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 192 de Março de 2022