
Desafios dos gestores no Admirável Mundo Novo
Por Clara Raposo, presidente e professora catedrática do ISEG
Setembro traz, habitualmente, o final de mais uma silly season, na qual é suposto recarregar baterias, esquecer as penas de um ano inteiro e dedicarmos o tempo a temas mais alegres regados com um banho de mar e um cocktail de fim de tarde.
Também nos media, os temas de Verão tendem a ser mais leves e retemperadores. Mas há quem aproveite a pausa das férias, sem a pressão das pequenas e grandes decisões dos dias de trabalho, para pensar mais “fora da caixa” no caminho que o mundo anda a seguir e no papel que cada um de nós desempenhava, desempenha e virá a desempenhar no futuro, enquanto economista, gestor ou empresário/entrepreneur.
Com o fim da silly season regressa a normalidade (?) da nossa vida profissional, embora o contexto de eleições legislativas tenda a prolongar a estação silly. Optando por não dedicar aqui tempo a este assunto, vou antes focar-me num conjunto de reflexões quanto ao futuro da gestão e do papel dos executivos.
Comecemos pelo mencionado regresso à normalidade (?) da nossa vida no mundo da gestão. Sem ser exaustiva ou muito rigorosa, gostaria de distinguir dois períodos recentes associados a diferentes conceitos de “normalidade”. Recordo-me dos tempos (recentes) em que o normal era a gestão ser encarada como a aplicação de um conjunto de técnicas que se aprendiam na academia, com uma base vinda das ciências económicas, e que se adaptavam na prática à vida real das empresas. Mas, com a aceleração da chamada transformação digital, a gestão parece ter passado a andar a reboque desse processo de transformação tecnológica: é este o novo normal. Dada a profundidade da alteração de práticas empresariais e de hábitos pessoais induzida pelas novas tecnologias, muitos gestores quase não têm tempo para se focarem no core dos seus negócios porque estão ainda a tentar perceber de que forma são afectados, como racionalizar estrategicamente a mudança e como terão de se adaptar a este mundo novo. Com um tecido económico dominado por micro-empresas, mais se percebe a pressão que tal causa na gestão do dia-a-dia e na liderança.
De facto, a evolução tecnológica trouxe profundas alterações às nossas vidas. Desde que há internet, motores de busca e email, passámos a fazer quase tudo só com um ecrã e o poder da impressão digital do dedo indicador. A isto acrescem os desenvolvimentos associados a um acumular de dados que passaram a ficar disponíveis no cibermundo, em áreas como a inteligência artificial e a robotização. Aqueles que na juventude leram e viram obras de ficção futuristas (nas quais incluo “Admirável mundo novo” de Huxley, “1984” de Orwell, ou “2001, uma odisseia no espaço” de Kubrick) poderão ver nestes novos tempos um sinal de que a realidade se está a aproximar a passos largos da ficção do século XX. Estamos já a viver num admirável mundo novo, com som e imagem digitais.
A este propósito, quero partilhar, sem leituras de natureza existencial, duas notas que considero relevantes para as economias e sociedades do terceiro milénio. A primeira refere-se ao que deve ser a gestão neste novo mundo e a segunda aos perigos associados a um ritmo acelerado de transformação tecnológica indevidamente acompanhado por enquadramento institucional (neste ponto sugiro que (re)ouçam a intervenção de Stephen Hawking na Web Summit de 2017).
Comecemos, então, pelo papel da gestão no terceiro milénio. O que é que um gestor deve saber e deve fazer? Quando actualmente as grandes empresas recrutam novos licenciados ou mestres em áreas de gestão ou economia parecem ter especial preocupação em identificar quem esteja adaptado aos novos desafios tecnológicos e também quem tenha um bom desempenho em características humanas de relacionamento interpessoal. Ou seja, por um lado espera-se que os gestores dominem tecnologia e, por outro, que se diferenciem de robôs, num mundo cada vez mais digitalizado em que um posto de trabalho ocupado por um ser humano tem de ser justificado por alguma capacidade pessoal que um equipamento não teria. Compreendo bem estas novas tendências e necessidades das empresas. Na verdade, muitas tarefas actualmente desempenhadas por pessoas poderão vir a ser programadas por outros tipos de inteligência e desempenhadas de outra forma.
Porém, parece-me um erro que se altere radicalmente a formação dos novos gestores para que sejam meramente “digitais” e bons comunicadores, com boa apresentação, sacrificando conhecimentos em áreas importantíssimas (apesar de tradicionais) da gestão. Um gestor forma-se ao longo de uma vida e é a sua capacidade de adaptação que define a sua marca.
Claro que um gestor em 2019 tem de saber utilizar novas tecnologias e ser um comunicador eficaz. Mas um gestor em 2019 não pode deixar de saber contabilidade, finanças, gestão de operações ou marketing. E leva tempo a ensinar-se e aprender-se tudo isto, claro, se houver profundidade e seriedade nesse processo. Seria um enorme risco os novos gestores não saberem em pormenor aquilo que os algoritmos estarão a fazer por si, hoje e no futuro: saber fazer e saber pensar. E não me vou alongar sobre o tema da formação contínua, na ordem do dia. É evidente que novas tecnologias são introduzidas no ensino da economia e da gestão – e muito bem – mas a formação de base não pode ser só forma, tem de incluir conteúdo, por muito que possa, na espuma dos dias, parecer “aborrecido” ou, por vezes, “teórico” aqui ou ali.
A segunda nota que queria deixar refere-se a uma preocupação quanto a um estilo de gestão e cultura empresarial que se desenvolve em empresas de cariz tecnológico, quando não devidamente acompanhados por um enquadramento institucional desenhado pela sociedade como um todo. Temos tendência a encarar estes novos milionários empreendedores como uma espécie de super-heróis, dada a sua inegável visão (hoje), capacidade criativa e de impacto (hoje). Porém, no contexto actual de preocupação com aspectos sociais e de sustentabilidade, seria irresponsável delegarmos nestas pessoas, que sabem imenso de tecnologia, as grandes decisões que dizem respeito a toda a humanidade. Recordemos que as obras de ficção futuristas do século XX que aqui referi nem sempre ilustraram um mundo apetecível. Quem terá a capacidade de implementar no futuro a perspectiva humanista e democrática que tem sido desenvolvida ao longo de séculos? Precisamos de engenheiros, empreendedores e gestores capacitados, mas também precisamos de economistas, pensadores e artistas, para que a vida faça sentido. A definição do âmbito de intervenção das empresas é um assunto da maior actualidade. Que não seja uma máquina a dizer-me de que é que eu gosto e o que é que eu quero, porque eu posso sempre mudar de opinião.
Este artigo foi publicado na edição de Setembro de 2019 da Executive Digest.