O futebol deve ser blocal?
Por Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati
Sim deve. Para continuar coerente nos seus princípios e valores, as instituições do futebol não podem ter comportamentos diferentes em situações iguais. Proibir a Rússia de participar nas competições internacionais por desrespeito dos direitos humanos e legalidade internacional com a brutal invasão da Ucrânia e permitir a participação do Irão, da China ou da Arábia Saudita nas competições é de um cinismo imenso. Organizar o mundial no Catar é apenas “a cereja em cima do bolo”. E pior é assistir às declarações do presidente da FIFA sobre os interesses económicos e ganhos extraordinários das empresas ocidentais na construção das infraestruturas do mundial do Catar, em contradição com a posição dos seus governos, que muitos nem se fizeram representar. E com razão! As empresas, organizações e países não podem defender princípios ESG (“environment, social e governance”) e depois participar e obter lucros de actividades que contradizem estes valores e princípios. E esta posição serve para pessoas, para a FIFA, empresas e estados. Confesso que concordo com o Presidente da FIFA quando acusou a Europa de “hipocrisia” sobre direitos humanos. Já não entendi a afirmação e comparação de que “sofreu bullying por ser ruivo como filho de imigrantes na Suíça”. Pois aqui não estamos a falar de bullying mas de vida ou morte, como vimos no Irão recentemente com a morte de Masha Amini por “trajar roupas inadequadas”. Ou ainda, como foi referido pela Amnistia Internacional quando denunciou a “exploração alarmante” dos trabalhadores estrangeiros no Catar, por estarem a ser “tratados como animais”. Mais de 6750 trabalhadores migrantes morreram enquanto se preparava o Mundial de 2022, portanto não se trata de bullying mas de direitos humanos fundamentais.
Portanto os blocos e as suas organizações têm de ser blocais (não globais, esta morreu) e apenas relacionar-se com blocos de países que respeitem os mesmos princípios e valores. E isso aconteceu também neste mundial, com a empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol a recusar-se a participar neste mundial após ter sabido que (só na construção dos estádios) já morreram mais de 6750 trabalhadores. Não se trata preconceito cultural ou religioso, mas apenas coerência, discriminação positiva e respeito pelos princípios que defende. A blocalização deve isolar em blocos próprios os países que oprimem o povo, não são democratas, não respeitem os Direitos Humanos ou até pelo modo como tratam os trabalhadores estrangeiros (como o sistema da kafala no Catar, ficando inteiramente nas mãos dos seus senhores e amos) e trabalho infantil.
Portanto a blocalização tem de permitir que os blocos se isolem (nomeadamente o bloco Europeu, o bloco Americano e o bloco Asiático do Japão / Coreia do Sul / Austrália e Nova Zelândia) e utilizem a economia como fator de dinamização do respeito pelos direitos humanos. Só assim se conseguirá isolar os fundamentalismos religiosos, a opressão de mulheres e de migrantes, a ausência de democracia e liberdade de expressão, o absoluto desprezo pelos direitos fundamentais e pela dignidade humana. Portanto o futebol deve ser blocal!