Está na hora da Europa parar de “andar a tropeçar nos próprios pés” por causa da nova administração americana!
Opinião de Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati
Crónica: “Pés de elefante”
A ameaça das tarifas “Trumpianas” sobre os medicamentos importados é um “tigre de papel”, um bluff. E a Europa reage com receio a isto, parecendo uma criança que anda a “tropeçar nos próprios pés”, pois não se preparou adequadamente para este cenário esperado. Mesmo sabendo que o presidente dos EUA utilizaria esta técnica de negociação para brilhar e ganhar poder, sem nada fazer, apenas através da ameaça do mais poderoso. Só que no caso dos medicamentos, os EUA não têm o poder. Pelo contrário. Vamos por partes. Comecemos pelos medicamentos genéricos ou sem proteção de propriedade intelectual. Neste caso importa referir que:
- Os doentes e os técnicos de saúde não podem assumir uma posição em que podem deixar de tomar medicamentos;
- A maioria dos medicamentos utilizados não podem ser substituídos, como se muda de marca de papel higiénico;
- Os medicamentos que podem ser substituidos são os medicamentos genéricos. Só que para que isso aconteça e para começar a fabricar medicamentos deste tipo, tem de ser criada uma cadeia de “supply chain” de baixo custo que garanta APIs, fabrico, controlo de qualidade, questões regulamentares e outras (que demoram quase uma década a estabelecer);
- segundo a FDA, 90% das prescrições nos EUA são de medicamentos genéricos;
- Só que existe uma concentração massiva dos fornecedores de API (princípio ativo), de material de acondicionamento e de produto acabado que estão localizardos na China e Índia. Valem cerca de 26 biliões de dólares em valor, ou cerca de 16% das importações dos EUA. Mas representam 85% dos pedidos regulamentares de registos de API neste país e a grande percentagem em volume do consumo verificado;
- Os medicamentos em que milhões de americanos confiam vêm de uma única fonte, de acordo com o Departamento de Comércio dos EUA: da China, que agora (por exemplo) responde por 95% das importações de ibuprofeno, 91% das importações de hidrocortisona, 70% das importações de acetaminofeno, 40 a 45% das importações de penicilina e 40% das importações de heparina. No geral, 80% do suprimento de antibióticos dos EUA é feito na China. 40% dos medicamentos consumidos nos EUA vem de um único produtor que está fora do país e seu “principal rival”;
- os EUA estão portanto totalmente dependentes destes fornecedores (incluiria também o México) em termos de abastecimento de medicamentos genéricos;
- A crescente dependência e confiança nestes medicamentos genéricos baratos de fornecedores estrangeiros levou ao encerramento das fábricas nos EUA. Ou seja não existe capacidade produtiva nos EUA e muito menos capacidade competitiva em termos de preço;
- O relatório anual da AAM, em parceria com a IQVIA de 2023, revela que o uso de medicamentos genéricos e biossimilares aprovados pela FDA gerou US$ 445 bilhões de poupanças para pacientes e para o sistema de saúde dos EUA — e mais de US$ 3 triliões em redução de custos nos últimos dez anos. Portanto depender da China e da Índia tem sido bom para o consumidor americano;
Conclusão: em relação a 90% dos tratamentos prescritos, ou seja medicamentos genéricos sem patente ou proteção de dados, não pode a administração americana aumentar as tarifas de importação destes medicamentos. Porque quem vai sofrer é o doente americano, que não pode deixar de os tomar. Inclusive esta falta de resiliência na cadeia de abastecimento com uma total concentração na China e Índia, leva a um risco de aumento de preços para o pagador, de poder afetar a disponibilidade de medicamentos essenciais e inclusive comprometer a segurança da saúde pública nacional. Já Joe Biden se tinha preocupado com este facto, tentando implementar políticas federais para reverter a deslocalização da produção farmacêutica e a dependência da Índia e da China. Foram créditos fiscais para produção doméstica e outras políticas do Congresso que não funcionaram pois levam muitos anos a ser implementadas. E não necessariamente conseguem preços tão baixos como os atingidos atualmente de países de mão de obra barata.
Portanto as ameaças americanas, neste segmento, não passam de “tigres de papel” e bluff!
O outro segmento fundamental na área da terapêutica em saúde, é a da inovação com medicamentos disruptivos que salvam vidas. Que transformam doenças mortais em crónicas (como o HIV), que as previnem (como as vacinas) ou que as tratam mesmo (como na hepatite). Neste segmento (10% do mercado americano de prescrições) importa referir que:
- As companhias farmacêuticas americanas são as maiores produtoras de produtos inovadores farmacêuticos do mundo;
- só que a maioria dos produtos farmacêuticos investigados pelas companhias americanas são produzidos noutros países industrializados. A “US customs” refere que a Irlanda é o maior país de origem, respondendo por 24% das importações farmacêuticas dos EUA. Seguida da Alemanha e Suíça com 12% cada. Ou seja mais uma vez uma concentração massiva em poucas geografias dado que 10 países, representam 80% das importações de medicamentos inovadores dos EUA, com a Irlanda à cabeça;
- quando analisamos os produtores na Irlanda, concluímos que apesar de recente (este boom industrial começou em 1964) foram aí concentrados investimentos gigantescos na produção de medicamentos inovadores mas também de processos eficientes de reengenharia para garantir uma melhoria de custos dos mesmos (como aconteceu por exemplo com a Pfizer e o seu medicamento Lipitor);
- Nos últimos 50 anos, a Irlanda desenvolveu um histórico muito forte de execução de projetos de biotecnologia, de qualidade e de conformidade regulamentar que é difícil de replicar no curto prazo. Este pequeno país exporta 116 biliões de euros e é o terceiro maior exportador mundial em valor de medicamentos;
- A Irlanda concentra nove das 10 maiores empresas farmacêuticas do mundo, assim como 14 das 25 maiores empresas mundiais de med tech (dispositivos médicos, de diagnóstico, etc). O setor emprega mais de 40.000 pessoas;
- Adoptou 6 medidas simples mas que levaram 50 anos a implementar: políticas fiscais atractivas, facilidade de acesso a 2 grandes mercados como o americano e o europeu, uma força de trabalho com valor elevado de conhecimento (de ciência, engenharia e produção), forte compliance regulatória (que gerou confiança na agência europeia – EMA- na e americana- FDA), incentivos governamentais (para a I&D, inovação e investimento) e finalmente comunicação permanente com os investidores;
- surpreendentemente mais de 90% destas companhias do top 10 (em termos de volume de negócio e emprego gerado) são americanas (encontramos 75 empresas farmacêuticas a produzir medicamentos em 99 fábricas; e85 companhias de medtech a produzir em 113 fábricas);
- companhias como Boston Scientific, J&Jz, Abbott, Pfizer, Medtronic, MSD, Lilly, entre outras; cuja administração americana não conseguiu ou não soube reter a sua produção nos EUA;
- estes medicamentos e equipamentos medtech (como desfibrilhadores ou pacemakers por exemplo) salvam vidas e não podem deixar de ser administrados ou utilizados. Já têm por norma preços elevados, e se se acrescentarem tarifas, correm o risco de se tornarem insuportáveis para os pacientes ou para as seguradoras que terão de pagar a sua utilização;
- portanto se as tarifas afectarem este segmento, a administração americana estará a tributar empresas americanas (e não a tributar o mercado europeu que já foi ressarcido pelos impostos e emprego pago e gerado na Irlanda, por exemplo). Assim como corre o risco de criar um problema de saúde pública.
O padrão repete-se também aqui: se a administração aumentar as tarifas de importação destes medicamentos, quem vai sofrer são as companhias farmacêuticas americana, que no limite pagam impostos a dobrar. Ou o doente que os tem de pagar, pois não pode deixar de os tomar pois corre risco de vida.
Esta falta de resiliência na cadeia de abastecimento dos EUA em produtos críticos, tem uma total concentração e dependência do exterior, num segmento em que não é fácil a substituição. O aumento de tarifas apenas ameaça os americanos, pois gera um risco de aumento de preços para o pagador ou de afetar a disponibilidade de medicamentos essenciais. Inclusive de comprometer a segurança da saúde pública nacional americana. Por isso mesmo as ameaças do novo presidente americano de tarifar a importação dos medicamentos são apenas “tigres de papel” e “gritaria” a que não devemos dar importância! A sua estratégia tem “pés de elefante” que também tropeça em si própria. Poderíamos inverter a ameaça e informar que quem tem o poder é a Europa, a China ou a Índia. Que caso pretendam, podem quebrar a segurança nacional americana em termos de saúde pública. Basta para isso criar tarifas de exportação para os EUA neste grupo de produtos ou criar ruturas na cadeia de abastecimento. Para bem dos doentes, que devem ser o centro das decisões, é bom que isso não aconteça. Mas que seria possível, seria!