Censura Digital: a Manosfera e os Riscos para Comunidades de Mulheres
Por Camila Rodrigues, investigadora do IPRI e Fundadora e administradora da comunidade Mulheres à Obra
Nos últimos meses, a política de moderação de conteúdos nas grandes plataformas digitais tem estado sob novo escrutínio, especialmente no contexto pré-eleitoral norte-americano. O Facebook, agora Meta, não é exceção. E é neste enquadramento que se insere um episódio com repercussões relevantes para o ecossistema digital português: a súbita remoção da comunidade Mulheres à Obra, o maior grupo de empreendedorismo feminino em Portugal, com cerca de 190 000 membros.
Apesar de anos de actividade regular, em respeito pelas normas da plataforma (o grupo chegou a ser contratado pelo Facebook como modelo para uma campanha), foi removido sem aviso ou explicação concreta. Esta decisão, aparentemente algorítmica, levanta questões mais amplas sobre os critérios de moderação utilizados pela Meta e os possíveis enviesamentos estruturais que esses critérios podem conter.
O algoritmo é neutro?
A crença generalizada de que os algoritmos são neutros tem sido amplamente contestada nos últimos anos. Diversos estudos demonstram que os modelos de recomendação e decisão automatizada reflectem, reproduzem e amplificam padrões de poder e exclusão existentes na sociedade. A moderação de conteúdo, mesmo quando automatizada, é uma escolha política e não apenas um processo técnico.
O desaparecimento de uma comunidade como as Mulheres à Obra não é, neste sentido, um caso isolado, mas antes parte de uma tendência que começa a ser documentada em diferentes geografias: comunidades lideradas por mulheres ou por activistas sociais em outras áreas são disproporcionalmente afetadas por decisões algorítmicas punitivas, muitas vezes sem possibilidade de recurso ou supervisão humana.
A tolerância crescente à “manosfera”
É neste contexto que importa observar com atenção o discurso público da Meta e, particularmente, do seu CEO, Mark Zuckerberg. Nos últimos tempos, Zuckerberg tem adoptado uma postura mais flexível, e em alguns casos até simpática, em relação a figuras da chamada manosfera, um conjunto de influenciadores
predominantemente masculinos, com discursos que vão da autoajuda ao sexismo explícito.
Durante uma entrevista no podcast de Joe Rogan, no início deste ano, Zuckerberg expressou preocupações de que o ambiente empresarial se tornou excessivamente “feminino”, defendendo a valorização da agressividade e da masculinidade nas lideranças corporativas, precisamente onde a presença das mulheres é ainda claramente minoritária. Esta posição alinha-se perfeitamente com a ofensiva de Trump contra as políticas de diversidade e inclusão.
Neste contexto, é pertinente questionar se este clima ideológico pode estar a influenciar negativamente o alcance, visibilidade ou até a própria permanência de comunidades femininas nas plataformas da Meta. Não há, até agora, provas diretas de uma relação causal entre estas tendências e a remoção do grupo Mulheres à Obra. Mas a correlação temporal, os padrões observados noutras comunidades e a falta de mecanismos transparentes de justificação reforçam a necessidade de escrutínio público.
O risco da opacidade algorítmica
O verdadeiro problema reside na opacidade das decisões. Não sabemos por que motivo o grupo foi removido. Não sabemos se foi uma falha técnica, uma denúncia maliciosa, um enviesamento algorítmico ou uma reorientação editorial deliberada. E, talvez mais grave: não temos como saber, porque não existe um canal eficaz de apelo ou auditoria independente.
Esta assimetria de poder levanta questões sérias para qualquer organização que dependa das plataformas digitais para comunicar, crescer ou servir as suas comunidades. Quem controla a infraestrutura digital tem hoje um poder que ultrapassa o das instituições democráticas e não está sujeito às mesmas regras de transparência, responsabilidade ou proteção dos direitos fundamentais.
O que está em jogo
Para o ecossistema empresarial e cívico, este caso é um alerta. Não se trata apenas de proteger grupos femininos ou minoritários, trata-se de garantir condições equitativas de acesso ao espaço público digital, hoje essencial à economia, à inovação e à democracia.
Com a entrada em vigor do Digital Services Act da União Europeia, as plataformas como a Meta estão obrigadas a assegurar maior transparência e direitos de recurso. O cumprimento efetivo dessas obrigações deve ser monitorizado de perto por entidades públicas, pela sociedade civil e pelos próprios utilizadores, especialmente quando comunidades inteiras desaparecem da esfera digital sem qualquer explicação.
A confiança num ecossistema digital justo constrói-se com regras claras, responsabilidade partilhada e respeito pela diversidade. A invisibilização súbita de comunidades que promovem a inclusão, a cooperação e o empreendedorismo feminino não pode ser encarada como um dano colateral aceitável. Muito menos quando o discurso dominante começa a dar sinais de que algumas vozes são mais bem-vindas do que outras.