Caroço de azeitona, digerido… e as cinzas?

Por Luís Gil, Membro Conselheiro e Especialista em Energia da Ordem dos Engenheiros

No meu recente artigo de opinião de 21 de maio e noutros artigos anteriores debrucei-me sobre a temática do caroço de azeitona e sobre o facto de ter saído um recente despacho governamental que determinava que este deixava de ter o estatuto de resíduo, em que a valorização energética não era possível, passando a ser um subproduto, que lhe abria essa e outras possibilidades de aproveitamento.

Mais recentemente, um Despacho conjunto (nº 5993/2025, de 28 de maio) dos Secretários de Estado do Ambiente e da Agricultura, estabeleceu os critérios de atribuição do fim do estatuto de resíduo para o digerido e o composto (dentro de certos parâmetros) resultantes da valorização orgânica, via digestão anaeróbia, dos efluentes pecuários e seus equiparados e/ou subprodutos de origem animal e produtos derivados associados ou não a biomassa vegetal, para poderem constituir matéria fertilizante.

Assim, quase de uma assentada, ficaram “resolvidos” dois dos problemas relacionados com a produção de energia via biomassa. No que se refere às unidades de produção de biogás/biometano, o anterior “resíduo” digerido era um problema e significava normalmente um custo acrescido na produção daquele gás renovável, mas poderá agora ser transformado num menor custo, quiçá mesmo numa receita, contribuindo economicamente para a implementação do Plano de Ação do Biometano e para o aumento da economia circular neste domínio.

No domínio da produção de energia via biomassa restam alguns outros problemas por resolver, de entre os quais vou agora destacar o das cinzas das centrais de biomassa. Em Portugal, estima-se que a produção anual deste tipo de cinzas esteja entre cerca de 140 e 250 mil toneladas. Saliente-se que o Centro da Biomassa para a Energia refere um teor de cinzas na biomassa florestal de 6% a 18%. Estas continuam a ser, na sua quase totalidade, depositadas em aterros, pelo que é de primordial importância encontrar formas económica e ambientalmente sustentáveis para a sua valorização.

Em Portugal, as cinzas de biomassa são classificadas como resíduos, continuando a ser abrangidas pelo RGGR (Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro). Como consequência, a prática mais comum de gestão das cinzas de biomassa lenhosa tem sido, como referido, a deposição em aterro. Esta prática apresenta desvantagens económicas e ambientais, negligenciando o potencial de valorização das cinzas. No entanto, as cinzas podem passar por um processo de desclassificação, sendo que existem diferentes mecanismos de desclassificação de resíduos na legislação portuguesa.

As cinzas, resultantes do processo de combustão da biomassa, são uma mistura complexa de componentes e são de composição muito diversa, dependendo de distintos fatores, como, por exemplo, o tipo de solo, a biomassa, o método de colheita e as condições de combustão. Sendo que da combustão da biomassa nas centrais/indústrias resultam dois tipos de cinzas: as de fundo (da câmara de combustão) e as volantes (caldeira, ciclones e filtros electroestáticos). Estas cinzas são maioritariamente constituídas por cálcio, magnésio, potássio, fósforo, sódio, manganês e enxofre, sendo deficientes em azoto e têm um pH elevado (alcalino).

As cinzas volantes provenientes da combustão da biomassa podem ser utilizadas na indústria da construção, sobretudo na produção de cimento. Em aplicações geotécnicas, estas cinzas são utilizadas em aterros, enchimento de cavidades subterrâneas e estabilização de solos expansivos. Existe ainda a possibilidade da utilização de cinzas volantes como agentes de enchimento em tecnologias de transformação de materiais poliméricos.

Foram também desenvolvidos vários estudos sobre o seu aproveitamento, nomeadamente, como fertilizantes, dado a sua riqueza de composição mineral ao nível de macro e micronutrientes inorgânicos essenciais. Por esta via será possível fomentar a economia circular neste domínio.

Saliente-se que a valorização das cinzas das centrais termoelétricas de biomassa irá diminuir a quantidade depositada em aterro o que está alinhado com os princípios de Diretivas comunitárias transpostas para a legislação nacional através do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro e contribuir para a fertilidade dos solos, com consequente diminuição do consumo de recursos naturais e de emissões para o ambiente.

Há alguns anos a Agência Internacional de Energia recomendava a revisão das regulamentações sobre resíduos e transporte devendo facilitar o uso transfronteiriço, incluindo a reclassificação de cinzas para aplicações florestais, evitando a classificação de “resíduo perigoso”. Na Suécia, políticas específicas visam a reutilização de cinzas florestais, mitigando a acidificação e assegurando qualidade técnica dos solos. Quanto à aplicação das cinzas de biomassa no solo, como fertilizante ou aditivo ao composto, já existe legislação em alguns países europeus como a Suécia, a Áustria, Alemanha ou a Dinamarca. O Regulamento (CE) n.° 2003/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de outubro de 2003 relativo aos adubos já permitia adicionar até 5% de cinzas no composto, mas sob determinadas condições.

De uma maneira geral, as cinzas são um dos fertilizantes minerais mais antigos, destacando-se pela elevada concentração de cálcio e magnésio, o que lhes confere propriedades alcalinizantes. Além disso, são ricas noutros nutrientes essenciais, tornando-as eficazes tanto para a recuperação de solos como para o melhoramento das condições de crescimento das plantas. A sua aplicação contribui para o aumento da produtividade agrícola, corrigindo o pH e fornecendo nutrientes essenciais. Embora apresentem baixos teores de nitratos, o que justifica a combinação com fertilizantes azotados, as cinzas são uma alternativa eficaz e sustentável para a recuperação de solos, sobretudo florestais, promovendo a circularidade.

Em Portugal, o Centro da Biomassa para a Energia tem realizado um importante trabalho neste domínio, tendo inclusive estudado a possibilidade de peletização destas cinzas no sentido de diminuir os problemas associados ao seu transporte e sua posterior utilização (é uma solução para reduzir a libertação rápida de nutrientes).

Está assim lançado o caminho para resolver mais este problema, convertendo-o numa oportunidade ligada à economia circular, ou seja, repondo nos solos os micronutrientes inorgânicos que de lá foram retirados pelas plantas cuja combustão foi energeticamente aproveitada.