Em contagem decrescente para o início da época balnear, do verão, e da época de maior risco de incêndios, começamos a ver os ‘sinais’ que antecipam a recorrentemente chamada “tempestade perfeita”: temperaturas acima do normal para a época do ano, ondas de calor e seca no sul do País.
O meios de combate foram reforçados a meio deste mês, passando a estar no terreno 11.293 operacionais e 34 meios aéreos, segundo o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), mantendo-se até 31 de maio, e trata-se do primeiro reforço de meios do ano, no que é denominado ‘nível Bravo’. Seguir-se-á novo reforço que tem vindo a ser preparado nas últimas semanas pelo Governo e autoridades públicas.
O ano passado foi relativamente ‘brando’ em termos de incêndios, especialmente comparado com anos anteriores. Em 2023 foram mais de 7 mil incêndios rurais e mais de 33 mil hectares de área ardida, ainda assim, comparando com a média dos últimos 10 anos, contabilizaram-se menos 40% de incêndios rurais e menos 64% de área ardida, em relação à média anual do período homólogo. “O ano de 2023 apresenta (…) o segundo valor mais reduzido em número de incêndios e o terceiro valor mais reduzido de área ardida, desde 2013”, indicava o IPMA tendo em conta os dados registados até setembro de 2023.
Mas e este ano? O que nos espera? Segundo adianta à Executive Digest João Jonaz de Melo, especialista em Engenharia do Ambiente, professor na Universidade NOVA de Lisboa e investigador no CENSE – Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade, tem “havido melhorias” na preparação, no que respeita a dispositivo de combate a incêndios, mas continuam a cometer-se os mesmos erros, especialmente o facto de não “existir uma estratégia de gestão integrada do território” florestal nacional.
Em que ponto de partida estamos neste verão? Estamos mais ou menos preparados do que antes dos devastadores incêndios 2017, por exemplo? Que evoluções temos feito neste aspeto (e o que continuamos a fazer mal)?
O que posso dizer é que tem havido ao longo dos anos algumas melhorias no dispositivo, mas continuamos a ter, genericamente, situações estruturais de risco elevado. Que têm a ver com várias coisas: continuamos com uma dominância no nosso panorama florestal de áreas de monocultura de pinheiro e eucalipto. Não está aqui em causa tanto a espécie em si, embora saibamos que são particularmente vulneráveis a incêndios, mas o facto de ser este regime.
Um segundo aspeto de vulnerabilidade é que muitas dessas áreas não têm uma gestão adequada: falo de alguém que faça a gestão do território, o que implica medidas de diversa natureza, e que muitas vezes não são feitas da forma mais apropriada
O terceiro aspeto é a distribuição demográfica que temos: no Interior do País em muitas áreas uma fuga da população, uma redução, e isso prende-se com a questão da estrutura geográfica da floresta. A estrutura tradicional era haver aldeias, haver terrenos agrícolas à volta das aldeias, e um mosaico de terrenos agrícolas e terrenos florestais, com uma dimensão mais modesta do que existe hoje.
O que temos hoje é muitas áreas agrícolas, ou por serem marginais do ponto de vista de produtividade, ou pelo abandono das aldeias, foram abandonadas enquanto áreas agrícolas e transformaram-se em áreas de mato ou em áreas florestais mal geridas, com um padrão geográfico desfavorável no que toca a vulnerabilidade a incêndios.
Depois soma-se a isso uma situação de alterações climáticas, em que há anos piores e melhores, mas a tendência, como tem sido evidente para todos nós, é de piorar, em particular a frequência com que há ondas de calor
E quando temos ondas de calor com dias seguidos de temperaturas acima de 30 graus, sabemos que a vulnerabilidade a incêndios cresce brutalmente, e é agravada em situações de seca.
Embora a seca não seja uma situação linear, já que havendo na Primavera, pode haver menos matéria vegetal combustível – não é linear – além de que as limpezas de terrenos é absolutamente necessária para a proteção de pessoas e bens. Por isso à volta de povoações, ao longo das estradas, é necessário.
Mas faz-se “demais”, vai-se além do que seria necessário nesse aspeto?
Falar em limpeza de matas como se fosse necessário ou apropriado estar a tirar arbustos do meio da floresta, isso em termos ecológicos não faz nenhum sentido.
Tem de ser feito no quadro de uma gestão florestal integrada, não é cada proprietário que tem um hectar ou dois que vai limpar o que seja nesse terreno.
O verdadeiro défice é de áreas florestais que sejam geridas com pés e cabeça, onde haja um conjunto de medidas de prevenção, que passam por manter linhas de água e galerias ripícolas, que normalmente são espaços menos vulneráveis aos incêndios e que podem funcionar como barreiras ou retardadores do incêndio.
Passa por haver um mosaico e não uma monocultura em grandes áreas e passa por haver medidas de gestão que permitam por exemplo acessos adequados e zonas de retardamento do incêndio no caso de acontecer
E ao nível da intervenção, do combate ao incêndio, haver garantia de facto de uma vigilância muito grande, e de uma primeira intervenção muito rápida, que isso é determinante para evitar que pequenos focos de incêndio se tornem em incêndios catastróficos.
Resumindo…
Temos uma situação estrutural que continua a ser bastante desfavorável aos incêndios, porque não foi alterada, e é preciso termos medidas apropriadas, e atuar proativamente em certas matérias.
Uma importantíssima é na regeneração de ecossistemas, temos ecossistemas muito degradados, temos áreas em que o solo está muito degradado, temos áreas que foram ocupadas com matagais, que se forem devidamente geridos até de podem transformar a prazo em áreas florestais próximas do seu estado natural, que curiosamente são muitíssimo importantes quer para a retenção de biomassa, de carbono, quer como mecanismo de prevenção de incêndios – porque são menos vulneráveis do que áreas de produção intensiva.
A regeneração de ecossistemas é peça fundamental de uma estratégia florestal e territorial a prazo.
Também é fundamental que sejam criados mecanismos do chamado pagamento de serviços de ecossistemas, para os detentores dessas áreas ainda hoje que existem não a deixem degradar e sejam recompensados, e não incomodados, por terem essas áreas – são medidas proativas, têm de ser de longa duração, e não se medem de um ano para outro. Tem de haver programas consistentes, com duração de 10, 20, 30 anos.
Já foram ensaiadas algumas atividades deste tipo e há vários projetos piloto no âmbito dos PTT (programas transformação paisagem), e é preciso que isso seja acompanhado, acarinhado e ampliado este tipo de intervenções.
A GEOTA tem alguns projetos desse género…
São em termos de coisas geridas por entidades privadas os maiores projetos de regeneração ecológica que existem no país neste momento, muitos deles feitos em cooperação com autoridades publicas.
Esse tipo de abordagem é absolutamente essencial e não se tem feito o suficiente nem apoiado. Está em curso e há alguma experiência no pagamento de serviços de ecossistemas e é ideia-chave que tem projetos piloto, mas não tem tido escala nem tem sido aprofundado da forma necessária.
Coisas que devem ser feitas no futuro: continuar esforços para que dispositivos de combate sejam assentes sobretudo na vigilância e na primeira intervenção rápida e eficiente, envolvendo os agentes necessários no terreno, e não estar a apostar em meios de combate, ou apenas em meios de combate para os grandes incêndios, que não só são mais caros, como menos eficazes.
A componente de fogo posto é também uma preocupação crescente…
Áreas de componente criminosa significativa, de fogos postos, têm de ter um patrulhamento por unidades das forças armadas, como já foi feito e o que se verifica é que isso resulta.
Não há uma varinha mágica, há um conjunto de soluções que já são conhecidas e que têm de ser postas a funcionar, o que é que não se deve fazer, é ter uma interpretação, vamos-lhe chamar, míope e mesquinha da legislação, por exemplo, da historia da desmatação e limpeza de terrenos.
Por exemplo, não faz qualquer sentido pequenos bosques de mata autóctone, que ficam a uma distância modesta de casas isoladas, serem abatidos. Esses bosques de espécies autóctones são essenciais no nosso equilíbrio ecológico. Não há um pequeno bosque que constitua um risco significativo de incêndio. A lei nesse aspeto esta mal feita: a intenção era boa, mas diz o ditado, de boas intenções esta o inferno cheio. Foi feita com intenção de proteger localidades de garantir que os acessos são mantidos de forma operacional, e essa intenção é boa, mas não pode ser estendida ao exagero da estupidez [perdoe-me a expressão], que é arrasar bosques autóctones! É o oposto do que se devia fazer… é ter bom senso! Deve ser nem mais nem medos do que o necessário.
Os organismos públicos, nesse sentido, funcionam bem e estão articulados devidamente? Estão capacitados (em termos humanos e de investimento) de forma adequada?
Outra coisa é apostar no conhecimento no território. Uma medida recente tomada foi a de desmantelar, desmembrar componentes do ICNF. Não faz sentido tem de haver uma unidade de propósito e de estratégia, de conservação da natureza e proteção das florestas, e isso não se faz separando os serviços e retirando capacidade técnica.
Quer as áreas de gestão florestal, que podem ser operadas por entidades privadas, ou associações, quer as áreas protegidas, em particular cuja principal responsabilidade é do Estado, tem de haver uma unidade estratégica e tem de haver meios… Equipas técnicas próprias, alguém responsável com botas no terreno, equipas de vigilância e de intervenção. E equipas qualificadas e isso claramente é insuficiente neste momento.
Também temos casos em que precisamos de mais Estado, precisamos de ter capacidade de intervenção no território, ao nível de prevenção de incêndios. Em alguns casos pode ser feito em parceria com as entidades locais, com a atividade de pastoreio, que é uma forma natural e ecológica de manter o combustível em níveis apropriados em determinadas áreas. Depende de haver conhecimento sobre o terreno.
Temos um país com uma paisagem e ecossistemas muito diversos, ninguém pense que se pode aplicar as mesmas regras no Interior do Alentejo e no Alto Minho, não faz qualquer sentido. Tem de haver uma estratégia global articulada.
A gestão territorial mudou nos últimos anos? Houve evolução?
Eu acho que sim, mas os desafios também são crescentes. Quer em termos de mecanismo de gestão, como dos programas de intervenção na paisagem, e forma de dispositivo de vigilância que está montado).
Houve alguns progressos em relação a 2017, nessa matéria do que conheço e das entidades que trabalham nesta área, sim. Mas continuamos a ter um problema de despovoamento, falta de presença humana no território. Continuamos a ter falta de ferramentas estruturais: a estrutura fundamental da floresta não se alterou significativamente. Estas medidas de alteração do uso do território, reduzindo áreas mais vulneráveis e tendo uma gestão mais proativa, medidas de prevenção da regeneração ecológica, são essenciais, mas o que existe são projetos-piloto. Não se está a trabalhar a sério em aumentar a escala destas coisas que se sabe que funcionam.
Não se está a levar isto devidamente a sério do ponto de vista politico e de criação de meios suficientes no terreno, sejam humanos, os mais importantes, mas também financeiros, técnicos, institucionais, de regras.
Metade das propriedades rurais não se sabe quem é o dono! Está qualquer coisa escrita na conservatória, mas o dono faleceu há 40 anos e tem não se sabe quantos herdeiros são… e ninguém é efetivamente responsável pela gestão do território. E terá de haver uma solução politica e institucional para isto. Alguém vai ter de gerir estes terrenos que ninguém sabe de quem são: é uma causa fundamental dos problemas que hoje temos.
Porque no fundo as vulnerabilidades não se alteraram significativamente.
A questão da seca agrava o problema?
É um risco subjacente, que é preciso dizer – os nosso problemas não são de falta de água. Ou seja, não são essencialmente de falta de água, mas sim de falta de juízo. São problemas de má-gestão, de contaminação, de excesso de carga quando não existe capacidade do ecossistema para produzir a água que alguém imaginou que ia querer! Grande parte dos problemas que temos de seca sentida, seja nos sistemas urbanos, quer na agricultura, tem a ver com uma degradação da qualidade da água e má gestão.
Temos os sistemas urbanos que já vi vários números oficiais a indicarem que a perda média nacional anda entre os 30 e 40%. Em alguns municípios , num numero significativo, chegam a 70% de perdas! A primeira coisa que temos que fazer é um programa a sério de renovação da nossa rede de abastecimento de água.
É dito pelas nossas autoridades e bem, porque o bom deve ser dito, temos uma rede de abastecimento que cobre 99% da população, quase, com boa qualidade garantida. Mas há um problema escondido nisto que é que isto são redes construídas grande parte há mais de 30 anos, e que não tiveram muitas delas a manutenção suficiente. Para ficarem em bom estado, os custos são muito elevados, é preciso manutenção à séria ara condição dessas infraestruturas não se degradar significativamente.
Por outro lado, oura coisa que nunca se fez em Portugal a sério, houve apenas campanhas pontuais: uma estratégia a sério de uso parcimonioso e eficiente da água
Não há um politica generalizada de poupança de água, em muitos municípios o preço de água é muito baixo, e permite-se usar água potável para tudo, para regar jardins, encher piscinas, tratar campos de golfe. A água não é um bem para desperdiçarmos como apetece, como se não valesse nada.
Fala-se num programa de armazenagem de água agora… A melhor armazenagem que temos é debaixo do chão e isso faz-se com ordenamento do território, com a regeneração de solos, de ecossistemas. Um ecossistema natural, seja mata mediterrânica, sejam zonas húmidas de pauis, juncais, são esponjas naturais de água que garantem, à superfície e em profundidade.
Nos aquíferos temos uma armazenagem a prazo, e esta a fazer-se muito pouco nessa área.
Quer-se ter soluções instantâneas e vai-se para soluções caríssimas, ou que em alguns casos são piores ainda, que vão destruir ecossistemas com produtividade e que funcionam como controlo do ciclo hídrico.
Por exemplo no Algarve e Costa Alentejana, o problema é que não há mesmo água, e não é razoável que seja o erário público a pagar custos extraordinários para disponibilizar água que é escassa, que não esta disponível, a pretexto de ser fazer isto ou aquilo. É preciso mesmo racionalizar.














