Ódio digital contra mulheres na política alastra-se na Europa, revela estudo. De quem é a culpa?

A investigação, publicada na revista científica Politics and Gender, conclui que as mulheres são alvos mais frequentes de ataques relacionados com identidade, aparência, género e etnia do que os seus colegas homens, que tendem a ser atingidos por insultos mais generalistas.

Pedro Gonçalves
Agosto 4, 2025
13:58

Um novo estudo internacional alerta para o crescente número de ataques pessoais dirigidos a mulheres políticas nas redes sociais, independentemente da sua notoriedade pública. A investigação, publicada na revista científica Politics and Gender, conclui que as mulheres são alvos mais frequentes de ataques relacionados com identidade, aparência, género e etnia do que os seus colegas homens, que tendem a ser atingidos por insultos mais generalistas.

A investigação analisou mais de 23 milhões de publicações na plataforma X (antigo Twitter), dirigidas a políticos de quatro países: Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos. À data da análise, a plataforma ainda mantinha uma política activa de moderação de conteúdos.

Giulia Fossati, membro do Partido Democrático italiano e activa nas redes sociais desde 2021, é um dos rostos deste fenómeno. Ainda sem grande projecção nacional, Fossati tornou-se alvo regular de insultos online por abordar temas como o feminismo, o racismo e a migração.

“Há uma violência enorme nas redes sociais”, afirmou à Euronews Next. Comentários como “vai para a cozinha” ou “cala-te, idiota” são frequentes. E muitas vezes os ataques têm um duplo alvo: o género e a idade. “Chamam-me ‘mulher jovem’ num tom que me torna menos credível, menos defensável do que um adulto”, lamentou.

Ataques atingem desconhecidas e figuras públicas
O estudo confirma que a visibilidade pública pouco conta: na Europa, mulheres políticas são atacadas com a mesma agressividade, independentemente do grau de fama. Além disso, os ataques dirigidos a mulheres têm, quase sempre, um tom mais pessoal e sexista do que os dirigidos a homens. Entre as categorias analisadas como “incivilidade” estão o discurso de ódio, estereótipos de género, linguagem de exclusão (como “as mulheres deviam ficar em casa e não fazer política”), insultos, ameaças, calúnias, vulgaridade e sarcasmo agressivo.

De acordo com os investigadores, este tipo de violência digital pode levar muitas mulheres a abandonar ou a reduzir a sua presença nas redes — e até a desistir de se candidatar a cargos políticos.

Raízes históricas e sociais
Andrea Pető, professora no Departamento de Estudos de Género da Central European University, em Viena, apontou limitações na forma como o estudo utiliza inteligência artificial para detecção de ataques. “A inteligência artificial não consegue apanhar as nuances”, disse, sublinhando que certos comentários, classificados como ofensivos, reflectem visões que ainda hoje têm eco em sectores democráticos da sociedade.

Pető contextualiza o problema no passado: “As mulheres foram sempre esperadas no espaço privado. Quando desafiam essa divisão — sejam elas bruxas, Marie Curie, deputadas ou autarcas — enfrentam mecanismos de disciplinamento público controlados por homens”.

A tecnologia amplifica o preconceito
Sandra Wachter, professora de tecnologia e regulação nas universidades de Oxford e Potsdam, acrescenta uma dimensão tecnológica e económica ao problema. “A tecnologia funciona como um espelho. Quem já é discriminado na sociedade acaba por sê-lo ainda mais quando a tecnologia é aplicada sem controlo”, afirmou à Euronews Next.

Para Wachter, os próprios modelos de negócio das redes sociais incentivam o ódio: “O que mantém os utilizadores online são conteúdos escandalosos, indignados. É isso que gera receitas publicitárias.”

É também por isso, alerta, que a desinformação e os discursos extremistas se propagam mais depressa do que a informação factual. “As vítimas são culpabilizadas. E nem os agressores nem as autoridades percebem a gravidade do que se passa por ser num meio digital”, afirmou.

O papel da regulação e os limites da inteligência artificial
A legislação europeia tem tentado responder ao problema. Em vigor desde fevereiro de 2024, o Digital Services Act (DSA) impõe regras mais rigorosas às grandes plataformas tecnológicas, obrigando-as a criar mecanismos de redução de riscos e facilitando o reporte de conteúdos abusivos por parte dos utilizadores.

Mas segundo Sara de Vuyst, professora de cultura visual contemporânea na Universidade de Maastricht, a tecnologia de moderação baseada em IA continua limitada: “Perdem-se muitos ataques formulados de forma sarcástica ou com subtileza”, alertou.

Tanto de Vuyst como Wachter elogiam o DSA, mas sublinham que falta mexer no cerne do problema: o modelo de negócio das plataformas. “São passos importantes, sim. Mas ninguém colocou ainda a questão essencial: e o modelo económico destas empresas?”, sublinhou Wachter.

Resiliência e ironia: a estratégia de Fossati
De volta a Itália, Giulia Fossati adoptou uma postura combativa face aos agressores. Inicialmente tentou dialogar, mas depressa percebeu que muitos comentários vinham de quem não estava interessado em debate. Hoje responde com ironia — e, nos casos mais graves, lembra aos ofensores que pode apresentar queixa, embora nunca o tenha feito por ser um processo caro e moroso.

Apesar de tudo, Fossati recusa-se a desanimar: “Há muitos comentários negativos porque não escrevemos sobre as coisas boas. Os que atacam não representam toda a realidade”, afirmou.

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