
Trump vê a UE ‘sem cartas na mão’ e promete aumentar tensão: mas a Europa tem mais trunfos para jogar do que imagina
Dois meses depois de Donald Trump regressar à Casa Branca, não é preciso ser um génio para perceber que a União Europeia está na sua mira. “A UE é uma das autoridades fiscais e tarifárias mais hostis e abusivas do mundo”, já indicou o presidente americano, reforçando: “Foi criada com o único propósito de tirar partido dos Estados Unidos.” Esta retórica não tem ‘arrancado sorrisos’ entre os líderes europeus, tal o início frenético de mandato do presidente americano, que está determinado a levar o confronto até à conclusão final.
A questão não é se Trump vai aumentar a pressão sobre Bruxelas, mas sim quando e em quanto. A ofensiva não é apenas comercial: o presidente americano já desafiou a soberania territorial europeia, com a ameaça da anexação da Gronelândia, o modelo digital do Velho Continente e até o seu sistema político. Ao mesmo tempo, reduziu drasticamente o compromisso militar com a Europa e pressiona Kiev a aceitar um acordo de paz favorável à Rússia.
No entanto, a UE vai responder? Segundo o jornal espanhol ‘El Confidencial’, a Europa tem mais cartas na manga do que os EUA imaginam, segundo concluiu o último relatório do Conselho Europeu dos Negócios Estrangeiros (ECFR), intitulado ‘Bruxelas hold’em: cartas europeias contra a coerção trumpiana’.
“A Europa precisa de aprender rapidamente a jogar as suas cartas. Precisa de avaliar as suas próprias estratégias — a sua própria influência sobre Trump e os Estados Unidos — e como fortalecê-las. Precisa de desenvolver um plano claro e realista para o que quer alcançar no jogo de póquer transatlântico que provavelmente está apenas a começar”, observou Tobias Gehrke, investigador do ECFR e autor do relatório.
Mas quais são os quatro ases da UE?
Tarifas e contramedidas
Ninguém duvida que a pior punição económica de Trump para a União Europeia ainda está para vir, provavelmente sob a forma das chamadas “tarifas recíprocas” que o presidente planeia anunciar a 2 de abril contra os países que impuserem qualquer tipo de imposto sobre os produtos americanos (até mesmo o IVA).
A UE, no entanto, está preparada. Em dezembro de 2023, o bloco aprovou o seu Instrumento Anticoerção (ACI), uma ferramenta especificamente concebida para dissuadir e responder à pressão económica de países terceiros. Esta legislação, elaborada a pensar na China, permite impor contramedidas rápidas e coordenadas contra qualquer ator que tente intimidar um Estado-Membro com barreiras comerciais, restrições ao investimento ou boicotes. Na prática, o ICA disponibiliza à Comissão Europeia mecanismos para impor tarifas, restringir investimentos ou suspender o acesso ao mercado europeu, tudo isto sem depender de longas disputas na OMC, cujo sistema de resolução de litígios está bloqueado pelos EUA.
Em termos de tarifas, a UE poderia impor uma tarifa de 20% sobre todas as importações dos EUA e até aplicar tarifas seletivas de até 100% sobre bens agrícolas e de consumo de Estados republicanos, como a soja, a carne de bovino, o whisky, as motos e as máquinas industriais. Além disso, Bruxelas poderia seguir o exemplo do Canadá e impor tarifas de exportação sobre produtos europeus estratégicos necessários aos Estados Unidos, como medicamentos, maquinaria e componentes eletrónicos, pressionando setores-chave da economia americana.
Outra estratégia importante nesta área é a regulamentar, com o possível endurecimento das normas ambientais, de saúde e tecnológicas para restringir o acesso dos produtos e serviços americanos ao mercado europeu. Por último, embora mais arriscado, a UE poderá também impor tarifas adicionais ao transporte marítimo transatlântico, tornando mais dispendiosa a importação de produtos dos EUA e prejudicando a sua competitividade no mercado europeu. Isto poderia ser conseguido impondo uma sobretaxa sobre os contentores de produtos americanos nos principais portos europeus ou aumentando os prémios de seguro para o transporte marítimo, dificultando as exportações.
A fortaleza digital da Europa
A UE tem a clareza de que a frente tecnológica será fundamental na luta contra os EUA. Com gigantes americanos como a Google, a Meta, a Amazon e a Microsoft a gerarem milhares de milhões de euros em receitas no Velho Continente, Bruxelas tem à sua disposição a ferramenta que as empresas tecnológicas mais detestam: a regulação.
Segundo o relatório do ECFR, a UE reforçou a sua capacidade de resposta com regulamentos como o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA), que permitem a imposição de multas, restrições de atividades e, em casos extremos, o bloqueio de acesso ao mercado europeu para grandes empresas tecnológicas que não cumpram as regulamentações locais. Além disso, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) e a Diretiva de Segurança de Redes e Informação (NIS2) fornecem uma estrutura legal para limitar a utilização de dados pessoais e reforçar a cibersegurança, dificultando a operação de empresas americanas que dependem da recolha de dados de cidadãos europeus.
O bloco poderá impor um imposto progressivo sobre os serviços digitais dos EUA, afetando setores como a computação em nuvem e a banca de investimento. Além disso, poderá reforçar os critérios de equivalência financeira para limitar a entrada de empresas americanas nos setores bancário e segurador europeus, obrigando-as a cumprir normas mais rigorosas se quiserem operar no continente. Ao mesmo tempo, Bruxelas tem margem para impor novas regulamentações sobre algoritmos e publicidade digital, restringindo as receitas das plataformas tecnológicas e reduzindo a sua influência na Europa.
Soberania tecnológica e energética
O resumo de políticas do ECFR observou que, num cenário de confronto económico com os Estados Unidos, a Europa não deve apenas defender o seu setor comercial e digital, mas também proteger a sua infraestrutura estratégica e a autonomia tecnológica.
Uma das primeiras medidas que Bruxelas poderá tomar é restringir a participação das empresas americanas nas compras públicas europeias, aplicando regras semelhantes às do programa “Buy American” de Trump. Isto afetaria setores como a computação em nuvem, a energia e a defesa, onde as grandes empresas americanas operam através de subsidiárias europeias. Poderá também reforçar os controlos de investimento direto estrangeiro (IDE) para impedir aquisições de empresas estratégicas por grupos americanos e exigir que certos sectores-chave fossem maioritariamente detidos por europeus. Na mesma linha, a licença da Starlink, a rede de satélites da SpaceX, pode ser revogada ou limitada para evitar que as infraestruturas europeias críticas dependam de uma empresa sob o controlo de Elon Musk, o atual aliado mais próximo de Trump.
O setor energético é outra frente importante. A UE é o maior comprador de GNL e de petróleo bruto dos EUA, o que dá aos EUA uma vantagem significativa em relação à sua segurança energética. Para reduzir esta dependência, Bruxelas poderia impor tarifas e restringir novos contratos de longo prazo com empresas de energia dos EUA. A partir de 2026, com o início de novos projetos no Qatar e noutros países, a Europa terá uma maior margem de manobra.
Por último, a UE poderia reforçar os seus controlos sobre a exportação de tecnologia avançada, bloqueando as vendas para os Estados Unidos de componentes-chave nos quais a Europa é líder, como a litografia ultravioleta extrema (EUV) utilizada no fabrico de microchips, materiais industriais de alta precisão, robótica avançada e produtos químicos especiais.
O calcanhar de Aquiles dos Estados Unidos: o dólar e as finanças
A supremacia do dólar e o colossal sistema financeiro dos EUA têm sido duas das maiores alavancas de pressão de Washington ao longo da história, mas a UE tem margem para reduzir a sua dependência e enfraquecer a influência dos EUA no setor financeiro global.
Uma das estratégias mais diretas seria limitar as participações europeias na dívida dos EUA. Atualmente, os Estados-membros detêm 1,55 mil milhões de dólares em títulos do Tesouro dos EUA, e uma redução gradual destes investimentos poderá pressionar os mercados financeiros dos EUA e aumentar o custo da dívida para Washington. Paralelamente, Bruxelas poderia promover a emissão de Eurobonds e exigir que os fundos de investimento e de pensões alocassem uma maior percentagem dos seus ativos em setores estratégicos europeus, reduzindo a influência dos EUA na economia europeia.
Outra medida importante é a desdolarização do comércio europeu. Atualmente, 50% do comércio global é faturado em dólares, o que dá aos EUA enorme poder de veto sobre as transações internacionais. Para combater isto, o Banco Central Europeu (BCE) poderia expandir as suas linhas de swap em euros com os bancos centrais dos mercados emergentes, incentivando a sua utilização como moeda de reserva alternativa. Poderiam também ser promovidos incentivos fiscais para encorajar setores estratégicos — como a energia e a defesa — a faturar em euros em vez de dólares. Paralelamente, a UE poderia desenvolver um sistema alternativo de pagamentos bancários e mensagens independente dos Estados Unidos, limitando o acesso dos EUA a infraestruturas críticas, como o SWIFT.
Finalmente, Bruxelas pode utilizar a tributação para exercer pressão sobre as multinacionais americanas. A UE poderia impor um imposto comum sobre os royalties, os dividendos e os juros, combatendo a evasão fiscal das grandes empresas americanas que operam na Europa. Poderá também classificar os acordos fiscais favoráveis na Irlanda e na Holanda como auxílio estatal ilegal, obrigando as empresas americanas a pagar mais impostos em solo europeu.
A Europa tem as cartas na mão. E a vontade?
Em conjunto, estas medidas não só representariam um rude golpe para a administração Trump , como também reforçariam a autonomia económica e estratégica de longo prazo da UE.
O principal desafio, no entanto, é político. Como salientou o relatório do ECFR, a Europa deve mostrar unidade e determinação na sua resposta. Se for bem-sucedida, poderá mudar a perceção em Washington de que a União Europeia é um parceiro fraco que pode ser abalado. Na melhor das hipóteses, uma estratégia de dissuasão eficaz poderá impedir Trump de tomar medidas extremas e preservar a estabilidade da relação transatlântica durante os próximos anos. A questão é: terá a Europa coragem para jogar as suas cartas?